I
Uma terrível tempestade fustigava a cidade e nada me confortava neste recanto tão especial para o meu coração. A noite era ainda mais escura porque tinha faltado a luz e apenas uma vela iluminava a minha coragem no sótão onde vivia. A vela, tão cativante, profunda e misteriosa quanto um devaneio igual a uma alma estonteada, aquela que é pobre demais para compreender a arte, conquistava o irrequieto estertor de um arrepio; aquele desejo de escrever que sucumbe quaisquer sombras que o infortúnio conseguiria criar.
Não me importava que o vento bailasse assustadoramente através da cidade, a chuva retinisse em terríveis sons que levassem qualquer criança a esconder-se debaixo de um cobertor porque eu, intrépido, escrevia o que a alma fazia cair: todos aqueles desejos e sonhos, lembranças e conquistas, virtudes e sensações, sendo deixados a tinta negra num papel antes virgem.
Quem estima a literatura, bem sabe que não há palavras sóbrias quando se toca todas as impurezas de um juramento, este providenciando certas sinuosidades que a claridade não alberga. Talvez a inspiração possa ser como uma flor que se guarda na mão de uma mulher vistosa, que se abre, violenta e maliciosa, além de qualquer cenário escarrado pelo ser humano. As sombras, que passeiam em delírio, deambulando como num cortejo fosforescente, têm máscaras que nunca caem e um sorriso que só a loucura conhece.
II
Porque há que tentar ser um bom escritor, desenvolvo…
Este relato surge porque também há momentos em que a inspiração é motivada quando o espírito cambaleia, o sol é uma imagem longínqua e a lua se esconde por detrás de um manto arrepiante.
Enfim… A candura de um início já tinha passado e os contornos de várias experiências tinham-me adulterado a percepção pois compreendia a satisfação e a insatisfação, quaisquer extremos que levam a compreender o porquê de haver sentimentos que corroem o íntimo e o porquê de se pensar em tanto que nos enferruja a vontade de caminhar. Talvez pudesse brincar numa avenida quase vazia, exibir-me tal como vim ao mundo ou observar o que os outros fazem à beira-mar, ser um voyeur, um lamentador, tudo menos um pálido habitante de uma cidade ainda mais pálida.
III
Enrubescia…
Após mais um golo de um soberbo vinho, altivo reparador de maleitas, sentia a imaginação cortar amarras a uma solidez que a realidade tão bem conhecia. Enlevado pela situação, os meus sentidos eram tão desiguais quanto o meu espírito. Não me interessava escrever o que outros compreendiam, apenas fazer das palavras um caminho com muitos atalhos.
Lembro-me… Lembro-me de um cálice de vinho perfumado pela sensualidade, um sabor divinal espalhado pelos lábios de uma mulher que ainda me invade os sonhos, uma beleza vaidosa que induzia à ascensão de maravilhas onde a riqueza queimava qualquer negação que pudesse ter. Era esta a poesia desenhada para adornar qualquer reino, sorte a minha que adornava o meu.
IV
Ofuscado pelo prazer do ambiente, envolvido pela luz da vela que dançava de forma extenuante neste quarto que antes estava às escuras, sentia que o cálice de vinho brilhava como se quisesse conceder o condão de entrar em outros mundos. Estes, tão febris quanto os que desejava conhecer, talvez não fossem inocentes mas o desconhecido nunca me apoquentou. Afinal, sempre quis descobrir algo mais interessante do que a palidez de uma rotina bem desenhada e a presença de sombras sempre me fizeram bem. Digo isto porque a fantasia não deverá ser apenas deixada para quando se sonha mas há que molhar a paciência, apartarmo-nos de quaisquer contrariedades e deixarmos uma porta aberta à investigação, à experiência, à elevação e à queda. Se apostarmos demasiado em floreados, talvez percamos muito do que reluz e as coisas que realmente interessam envelheçam antes do tempo, deixando-nos sozinhos, como se apenas um quarto escuro fosse a nossa realidade. A verdade é que a sombra é a beleza já caída quando o ser padece de todas as dores…
Não! Nunca fui amigo de lugares insonsos, preferindo a alegre ebriedade dos artistas que conhecem mais do que o dinheiro, cuidando do desenvolvimento do intelecto mesmo que a vida providencie insensatos balanços. As minhas pretensões eram o cuidar da minha arte com o requinte dado às palavras, quer sejam a fineza de uma sexualidade enrubescida, quer sejam uma mistura de loucura com selvajaria.
V
Que nunca se esqueçam…
Há momentos em que a vela é uma bendita inspiração que faz os aventureiros percorrer mais do que os cobardes pretendem porque estes últimos gostam de ficar sentados em cima da vã glória que conquistam, remoendo os seus muitos falhanços e detestando os que partem para longe. Se estes dão notícias, pode-se não saber, também quem morre nunca o dá… a não ser que volte como uma miserável imagem do que foi. Por vezes, os sonhos mostram que tudo é melhor do que parece mas nem sempre se pode contar com a fantasia. Para quê, dizem uns? Viver é preciso! Sim, claro que é mas viver sem sonhar não é vida que se deseje. Afinal, para quê passar de um dia para outro se nada de diferente se espera?
VI
Magoa-me viver sozinho, ser um poeta criado pela nostalgia, suspirar as ténebres teias de um reles caminho onde não há alegre feitiço nem vontade de ver o dia…
VII
Toldado pela embriaguez, tenho a dor de não ter qualquer fortuna. O meu sangue tem o sabor de um vento que conduz os mortos, porque eu, cativado pela ilusão de ser criador, caminho com hábeis passos, adornado apenas pela boémia do bom bebedor. Tal e qual um patético malabarista, brinco com a alegria e a tristeza, a mediocridade e a nobreza, mas fujo da apatia que é não saber chorar. Tenho apenas um sorriso ingrato, esse que não conhece a pureza de viver sem amar a dor…
Chamam-me louco, mas não sou mais de quem se esconde por detrás de absurdos, de quem esgrima pela vida como um bruto e traduz amor por dinheiro. Se minto, é porque não quero que conheçam a minha alma. Esta, sempre foi rasgada pela ténebre elegância que o dia nunca quis ter…
VIII
Não! Não sei ser pacato… Desde que nasci que grito para que o universo saiba que estou vivo embora as minhas façanhas nada tenham que respirar o mesmo ar de outros. Afinal, porque deveria contar as mulheres que já aqueceram o meu corpo, as bofetadas que já levei na cara, as lágrimas que já fizeram-me cair? Todos temos sonhos que despertam o apetite, uma história de amor gravada numa árvore, apenas o peso da madrugada podendo fazer-nos adormecer. Mesmo assim, nunca saciamos o esquecimento porque existem aqueles delírios que actuam como fotografias desfocadas que nem o nevoeiro consegue imitar. Se certos beijos não nos interessam, tal é porque são demasiado frios para o coração, vagas impressões desconcertadas acabadinhas de sair de uma volúpia visceral que nos aperta o âmago. As melodias que criaram para nós acabando sozinhas, quase esquecidas, ondulando levemente rumo ao vazio…
IX
Apreendendo como véu a estranha conformidade da chama dançante, as figuras que formava na parede sendo tapeçarias de cores sombrias, sentia a tempestade como se fosse um eco revitalizador. A minha sede exigida pela inspiração nada significava além de um prémio que rugia em prol da arte. Todos os artistas moram à beira de um precipício e, se não caem, é porque há demónios a desejar vê-los sofrer…
X
Sim… Nesta noite de espelhos sombrios, provava um líquido que apertava menos o íntimo, que refulgia o meu querer com a vontade dos neurónios embriagados que nada de cansados ficam quando cobertos por uma insanidade temporária. Bem, chamar isso de insanidade e, ainda para mais, de temporária, é esquecer que o escritor resvala em sinuosidades nada benéficas para a harmonia. Pois, o artista que não sabe que é mais rico do que tudo o que o ouro poderá comprar, deve ser comparado a rosas já murchas e prestes a se tornarem cinzas. Não tem ideias apesar da grandeza da arte que lhe convém, segue os outros porque é preguiçoso e não quer lutar. Finge… Sim, finge que sabe muito mas não sabe inventar, não como, por exemplo… eu, que, quando bebo um trago desse delicioso néctar, assumo que a tempestade tem propriedades revitalizantes porque são os fantasmas que despejam as suas lágrimas numa terra encolhida pela evolução.
XI
Que acordem! O dinheiro não faz a alma crescer! É pálido, ignóbil, actua como vírus e mata qualquer sensibilidade. O que importa é saber sentir, criar, aprofundar o conhecimento, destituir a indiferença do seu trono. Fazer com que o sorriso volte a ter o seu lugar…
Podem pensar que muito do que crio é devido à perda de sanidade, àquela fragrância inusitada que se liberta de um certo copo e que me faz desenvolver um faro específico para procurar temas que têm a ver com o íntimo. No entanto, que outra enlouquecida propriedade além da inspiração ficaria bem a uma noite de tempestade em que a cidade ficou às escuras e só uma vela, uma caneta, um papel e um copo de vinho me separam do aborrecimento?
XII
Bem… Pondo de parte qualquer memória de manhãs adormecidas, cativado por uma sonolência conturbada, apago a vela e, querendo descansar de tudo, despeço-me.
… … … … … … … … … …
Adeus.
(texto que surge no vídeo-arte com o mesmo nome que fez parte da exposição "Toma-te o Vinho" concebida pelos "Mad Space Invaders" no IVBAM de 27/01 a 17/02.
Devido a ter quase 16 minutos, teve de ser dividido em duas partes de modo a poder ser visualizado no You Tube:
Uma tempestade num copo de vinho - Parte I
http://www.youtube.com/watch?v=vl-WUTQOPd8 Uma tempestade num copo de vinho - Parte II
http://www.youtube.com/watch?v=jRb6nQw2Z4I&feature=related