Nasci numa
tarde de sol altivo, preenchida por um vento que continha os cantos de outras
eras. Despertei-me bem cedo, uma potência além de tudo o que atinava,
concordava e se rebaixava à injusta notoriedade de um passado com muitos
grilhões. Era jovem, obstinado e já o vento me conduzia ao grito! Sorridente, pus-me
de pé, destemido, e gritei:
“Não
serei o que desejam que seja! Antes o asco, a tempestade e o abismo, do que o
vosso tão plácido perfume!”
Após
isso, tentaram agarrar-me, abater todos os preceitos que consideravam imorais,
arranhar esse iniciar de liberdade, sorver esse fôlego que era só meu e consagrar-me
à sua maldita glória, mas eu fugi, saltando por cima de tudo e de todos, nada
me importando se esbarrasse em ignorantes, religiosos ou ovelhas.
Abrindo os
braços no alto de uma montanha, declamei toda a prosa e poesia que a minha alma
pretendia, rasgando quaisquer cores que nada tivessem a ver com a minha satisfação.
Os meus urros pareciam trovões que se reflectem na terra e voltam ao céu, tal
era a hilaridade que ribombava de mim, até que, por fim, inquietei a Natureza.
Começou a
chover, banhei-me em desvarios e necessidades, o frio apertava-me a carne ainda
mais aos ossos e tiritava naqueles frémitos que se misturam ao coração. Tudo é
uma consequência de uma inconsequência que nos faz abrir a consciência…
Faltava-me…
Sim, faltava-me ela, uma dama que soubesse o que deveria ser, a profundidade de
emoções e pensamentos que conseguisse aquecer o corpo para além de qualquer
Inverno. Onde é que poderia encontrar tal ser? Em que parte do mundo existiria
alguém assim, tão ideal para mim?
Foram longos
os meses de deambulação, longas as noites de sonhos e distâncias, longas as
manhãs em que acordava sozinho…
Um certo dia,
cheguei a uma aldeia e dirigi-me para o centro da mesma. Ansioso, nervoso e
latejante, a todos chamei para que soubessem que um poeta lhes iria presentear
com as suas mais recentes obras. É claro que todas elas tinham aquele jeito tão
irrequieto que é clamar pelo dia quando a noite aperta e sentir a noite quando
o dia tem demasiado cansaço, mas a inspiração, aquela tão verdadeira que adoça
o peito, não tardou a surgir pois vi uma mulher, entre as muitas que acorreram
aonde eu estava.
Ela, de
cabelos compridos e encaracolados, olhos brilhantes e sorriso divinal, parecia
não perceber o que eu estava a dizer, talvez porque não sabia falar a mesma
língua ou fosse meio surda.
Após mais ou
menos meia hora de eloquentes divagações sobre os recintos de bom préstimo ao
romance, à natureza e à disfarçada luxúria, cheguei ao final da minha exposição.
Agradecendo os aplausos, sorrisos e dinheiro de quase toda a minha audiência, pois
ela não se fez ouvir nem ver, aproximei-me dela e, perplexo, perguntei-lhe se
as minhas palavras não lhe interessavam. Ela, num jeito tão peculiar,
respondeu:
– Se tudo o
que dissessem, aquecesse o meu coração, não seria única, mulher com uma boa alma,
mas mais uma que se deixa levar pelas armadilhas de outros.
– E se eu te
disser que, o que declamei, foi em nome de quem não conhecia, mas que desejava
conhecer?
– Se não
conhecias, declamarias para uma sombra, um espelho tão negro quanto um coração
que não sabe a quem amar…
– Tudo o que
um poeta cria é por necessidade, não por obrigação, e eu precisava de me
conhecer, de saber o que o meu coração sentiria quando encontrasse a mulher dos
meus sonhos...
– Um poeta que
não sabe o que sentir quando ver a mulher dos seus sonhos? Como é que isso é
possível? Acaso sabes tão pouco do que é o amor?
– Tem-se de
descobrir o dia e a noite. Não há momento futuro que não seja um mistério… Sou
apenas alguém que pretende conhecer a si próprio de modo a saber se
reconheceria a mulher dos seus sonhos…
– Sonhas sempre
com sombras?
– Os meus
sonhos são enevoados, vejo figuras, nunca caras, sinto o toque, nunca acaricio,
oiço palavras, nunca corações…
– Precisas de
aprender… Tal leva o seu tempo…
– Tento ter o
possível de paciência…
– Paciência…
Sim, é preciso… Bem, desejo-te uma boa vida. Adeus.
– Não! Espera!
– Porquê?
– Quero
conhecer-te melhor…
– Porquê?
– Porque… Bem…
Intrigas-me…
– Em quê?
– No facto de
que… Gosto de conversar contigo… Tal como em mim, vejo em ti muitos cenários
que arrepiam…
– Sou apenas
uma mulher que não gosta que a tentem conquistar em nome da futilidade.
– Não, também
não o pretendo!
– Será preciso
muito tempo para deixar-me levar…
– Não pretendo
outra coisa…
– És assim tão
paciente?
– Pela mulher
dos meus sonhos, sim!
– Como sabe
que eu sou?
– Como sabe
que não é?
– Como sabe
que é o meu?
– Como sabe
que eu não sou?
E os anos
passaram…
(escrito numa
bela tarde de sol e muito vento, ao sabor de uma bica pingada, no miradouro de Sophia
de Mello Breyner Andersen – Lisboa)