segunda-feira, janeiro 07, 2008

Sentiam os meus passos na escuridão - Conto (Excerto)

" Sentia-me deliciado pela montanha de gélidas cores que percorriam a noite, as folhas voando sob um tétrico sentido num linguajar próprio do Outono onde a fome de sorrir já se tinha perdido com o final do Verão que, embora tivesse muito de encanto para adornar a alma singela, nada me dizia.
Considerava-me mais um amante do abismo do que daquele turbilhão multicolor que a Primavera criava e que a estação seguinte pintava com mais luz. Afastar-me do embaraço causado pela poesia de tais terrenos pueris era a minha vontade embora soubesse o quão difícil seria verter as lágrimas da inspiração quando tudo o que via me seduzia a caminhar parado, perdido, estagnado.
Era nas estações mais frias que vigorava o meu olhar, a presença de uma insinuante corte riscando da mente os provérbios de gerações sem empenho em enaltecer a razão e a alma, apenas desenhando contrastes simplórios entre as inglórias conquistas e a palidez existencial.
A pródiga nostalgia firmava o mais belo enaltecer de tudo o que não se conseguia ver perante a mais gloriosa das luzes, essas sendo tão toscas e delirantes que sucumbiam a inteligência a farrapos sem cores a ter qualquer substância a apregoar.
Era o meu humilde serviço ter de riscar desta existência aqueles que não possuíam capacidades para seduzir as palavras a ter mais acção do que as avistadas pela mera comunhão da carne com a realidade. O Universo não precisava de lamentar a sua existência com as falácias de quem não lhe trazia algo de valor!!! A idade, a idiotice, a rústica banalidade eram óbvias atribulações para completar o meu destino…
Eu, como todos os que me conheceram vieram a saber, era a Morte. Um cortejo de infindáveis apetrechos vertendo da minha esquelética mão para levar, àqueles que pretendia adormecidos no leito da eterna obscuridade, a minha magnânima vontade.
Normalmente era à noite que os levava a terminar a sua existência, firmando um contrato permanente com a realidade que comandava, um manto de espectros e inquietas sensações povoando o meu mundo que rivalizava em grandeza com toda a beleza que diziam pertencer a este tão singelo mundo.
Claro que haviam quem me ajudava, meros servos que estavam em todo o lado lembrando a uns e outros que nada havia de os fazer prender à Vida pois, no final de tudo, esta saía vencida. Afinal, podia contar muitas mais vivências no meu reino do que em toda a população que a História poderia enumerar… "

"Resquícios de estranhas sinfonias" (Excerto) 2º livro

" Diversos minutos após o início da minha caminhada, ouvi o progressivo aumentar de volume do que me pareceu ser uma voz humana. Assim, a doçura se fez sentir a partir do momento em que reconheci a voz como sendo a de Isanthya, chamando por mim…
Sentindo-me revitalizado, fui na direcção de onde a voz surgia ansiando ver aquela que ao meu coração tocava com ternura. A gentil presença do que era, para mim, a mais bela mulher alguma vez criada, fazia-me sentir bem, como se o paraíso estivesse mais perto do que alguma vez imaginado.
Já não me importava mais a neve, as árvores com os seus ramos dissolutos, as nuvens carregadas e as dores que o meu corpo transbordava. Apenas queria ver Isanthya, toca-la, abraça-la, beijá-la…
Não demorou muito a tal acontecer… Afastando-me do manto de verde-escuro adornado por sombras em diversos tons, descobri uma vasta planície acinzentada onde, ao centro, avistava uma luz difusa. Acercando-me, verifiquei que possuía forma humana. Era mesmo Isanthya e esta me chamava, perfumando o meu nome com algo mais digno de menção do que a criação humana.
Ao vê-la, fiquei estático… A sua beleza era agora ainda maior como se a elegância do seu porte conseguisse inebriar a quem a conhecia com dons mais divinos do que os céus ou a santidade. Se a agreste condição a que tinha sido antes conduzido tinha deixado as suas marcas, agora era tudo pertença de um passado sem requinte. Agora estava junto a Isanthya, abraçando-a, beijando-a…
Se era este o sentir da harmonia, o reencontro com a casa que sempre almejei encontrar, a verdadeira condição de paraíso adornando todo o meu sentir, então que me deixassem radiante, que a miséria soubesse derramar a sua soberba sobre o deserto e este a fizesse desaparecer mas que não fosse eu apanhado nessa torpe celebração pois merecia ser feliz.
Os seus beijos eram mares de rosas onde não existiam espinhos, o fôlego cortado por uma sensualidade primaveril, a pele mais alva do que toda a neve que pudesse ser criada, o ar sendo perfumado pela cortesia de um misticismo irresistível. Isanthya era aquela que sempre quis encontrar e nunca pensei existir, a bela com coração de ouro e alma serena, a diáfana presença de um anjo num reino de agressões e tristezas.
Era feliz entre a realidade e a fantasia, as lágrimas escorrendo não pela dor mas por uma felicidade sem igual. A paz sempre ausente, agora tão perto, nada havendo que ditasse febre a demónios, antes anjos nos observando e que louvavam o dialogo amoroso que trocávamos. Que dizer do cendal que cobre os apaixonados, o riso obedecendo a frases que saciem a loucura da saudade? É assim o mistério de um Verbo maior…
Enquanto nos beijávamos, a sede sendo aniquilada com cada segundo de paixão, não me apercebia que a natureza pregava uma outra partida. O solo onde nos encontrávamos era nada mais do que gelo que se ia partindo aos bocados até que fomos tragados pelas águas.
Descíamos em espiral, agarrados um ao outro, lábios tocando lábios, o amor que do nosso íntimo surgia emanando em luz os nossos corpos e cedendo protecção à injúria que a água fria pudesse trazer. O tempo que passava não nos era importante, caíamos como folhas soltas mas cheios de sabor a infinito, o abismo nunca sendo observado, apenas nós e o paraíso ao nosso lado.
Sentia-me feliz…
De repente, bati no chão duro. Atordoado, levantei-me aos poucos e poucos e procurei por Isanthya. Não a via…
Tinha, uma vez mais, desaparecido e levado o meu sorriso com ela. Para quando uma próxima vez? Seria possível que passaria por incontáveis tramas de esperança e desespero, nunca encontrando um fim que me trouxesse satisfação, desapego de qualquer tragédia?
Sentei-me um pouco e apoiei a cabeça nas mãos, os cotovelos em cima dos joelhos. Apetecia-me chorar, deixar sair rios de mágoa e desilusão e quedar-me por toda a eternidade nesse preciso lugar. Seria demasiado fácil desejar ser como uma das estátuas que tinha antes avistado, os seus corpos retorcidos em poses nada comuns para a vida. Se ao menos o esplendor da virtude concedesse a ousadia de me libertar…
- Ajudem-me… - ouvi uma trémula voz de homem entoando ao longe.
Levantando a cabeça, ouvi a mesma súplica. Caminhando na direcção da voz, esta nada reconhecível, reparei que o lugar onde me encontrava era em tudo igual ao sítio onde tinha antes estado após sair da casa em ruínas por artes desconhecidas.
As mesmas árvores esqueléticas, a mesma atmosfera dissonante, a mesma luz medrosa pairando no alto como se o amanhecer ou o entardecer tardasse num infinito pesar. Que raio de cenário aviltante era este onde tinha vindo parar??? "

"De espectros e dor..." (Excerto) 1º livro

"Era noite ainda, e encontrava-me deitado na margem do lago. Um barco pesava sobre a margem e soube que de alguma maneira tinha alcançado o destino que me havia sido proposto alcançar. Aquele que me tinha deixado à mercê da dor, não se encontrava ao meu lado e julgo que sabeis que tal facto aliviou ainda mais o meu espírito…
Ao levantar-me, senti todo o meu corpo estremecer em meio a uma dor generalizada que teimava em envolver-me nos seus grilhões. A cada passo dado, visões de um vermelho vivo atingiam a minha mente como se tal cor fosse a que assombraria os mais próximos e os mais distantes momentos. Julguei, na altura, ser consequência de ter sido verdadeiramente exposto a uma luz de enorme intensidade, como se o que me tinha acontecido fosse mais uma das inúmeras realidades por onde poderia vaguear.
Sentando-me numa pedra, procurei distanciar-me de tudo o que me rodeava e encontrar algumas respostas para o meu infortúnio. No entanto, o que me atormentava não era somente o lugar onde me encontrava e o mistério em que me tinha inserido, mas também o facto de a minha alma não se encontrar completa, como se tivesse cometido um crime sem qualquer hipótese de redenção. Após uns minutos de descanso, senti a insanidade diminuir ao ponto de me poder novamente levantar e caminhar para onde fosse que eu devesse e pudesse caminhar…
Esperava que, durante a minha caminhada, o sol surgisse para mais uma era de luz, mas quis a noite que viesse algo mais.
Não é demais supor que neste lugar tão estranho, encontre algo ainda mais estranho embora a surpresa surja sempre impregnada num misto de ansiedade e descrédito. Uns bons passos para além da densa folhagem que torneava o lago, surgiu uma escadaria cujo propósito não me era possível conhecer pois o cimo da mesma encontrava-se coberto por ervas e folhas, e apenas a luz da lua cheia permitia observá-las. Curioso, subi os degraus que levavam ao cimo pois o Tempo a tudo permitia. Afinal, que mais poderia fazer neste recanto enlouquecido do Universo?
Que se poderá dizer da tranquilidade quando apenas a lembramos como uma memória já ida de séculos atrás? O fogo que nos aquecia nos meses de frio apartando-nos dos poemas de solidão, o manto de luz que resplandecia no alto simbolizando a fartura de tempos maduros, o sorriso angelical da bem – amada… Teria eu vivido tudo isso ou seriam sonhos que a solidão tece?
Aqui, neste vasto plano de cores acinzentadas, quedava-me pela brisa quente e tépida do sufoco que é sentir-se aprisionado e conhecia apenas o toque de um miserável desprezo sem sentido.
Com cada respirar, tombava uma ténue esperança, diminuía um pálido brilho, surgia o silêncio… Apenas os meus batimentos cardíacos ganhavam vida num compasso incerto, um misto de seriedade e embriaguez como se fosse, cada vez mais, hipnotizado pelo medo.
Não conseguia ver muito bem o que se escondia por detrás da densa folhagem que cobria a parte de cima da escada. No entanto, não sem alguma dificuldade, consegui abrir uma brecha de modo a avançar e descobrir se, de facto, a escada dava para algum edifício antigo. Os meus passos eram demorados e cautelosos pois o desconhecido de tal forma tem de ser penetrado. Incapaz de pintar uma imagem do que iria encontrar, os meus olhos procuravam ir mais além, embora a luz da lua tornasse impossível tal empreitada devido às nuvens que, por vezes, a cobria.
Embora cauteloso, não demorei muito em colocar um pé em falso e cair, uma vez mais, para a incerteza. A prudência muita vezes surge como falsa, levando-nos a crer ser apenas uma marioneta de um plano maior, um mero sacrifício da existência. No entanto, não levei muito tempo a encontrar o solo, e se me levantei incólume foi porque tive a sorte de este estar coberto por um manto de ervas e flores. No entanto, a luz da lua mostrou-me que o formato de tais plantas era incrivelmente aterrador.
As ervas mostravam-se altas e vistosas enriquecidas por um vermelho sangue que as seduzia para a vileza das mais torpes acções. As flores pareciam já murchas embora se mantivessem na vertical e assumissem uma cor tão escura que lembravam um abismo.
Nem nos meus piores pesadelos poderia imaginar encontrar-me em tal lugar… Um plano existencial em que tudo rugia à noite, em que o desprezo pelo dia tornava as palpitações cardíacas falíveis, ténues soluços que clamavam esperança… Meu Deus! Era tudo incrivelmente odioso!!!
De coração na mão, cobria os farrapos, que transfiguravam-se como plantas, com os pés, tentando isolar-me, procurando aliviar o desespero com uma pálida confiança de poder sair deste buraco imundo onde a Morte corteja até o ar…
A cada passo, uma sensação de cansaço abrigava o meu corpo, seduzindo-me para a impúdica magnitude de um reino que muito sofreria se acometido pelas visões da desregrada infâmia que tive, até agora, o horror de conhecer. Nunca tinha imaginado que ruína maior do que um cemitério pudesse existir!
Desejando apenas uns momentos de descanso, decidi deitar-me nesse manto de ervas e flores… Momentos que tão bem fariam ao meu corpo, não fosse o acordar…
Não sabendo contabilizar as horas que passaram desde o fechar e o abrir dos olhos (muito porque a noite, ao cair, pareceu nunca mais querer o Sol deixar subir), apenas foi-me permitido conhecer o facto de ser prisioneiro… Envolto por uma mortalha de ervas e flores, fungos e líquenes, era cativo deste enlouquecido cenário, um olho livre para me permitir conhecer tão maldita sorte…
Julguei estar perto do fim, que seria inteiramente coberto por esse manto de asquerosa podridão, que daí a uns momentos, o meu corpo desapareceria para sempre nos recônditos de uma insana Natureza. Pois… A mais preciosa das virtudes poderá ser a paciência, mas a fome de viver, se é que chamaria a isto de viver, não fica atrás.
Com um esgar de raiva, rasguei as ervas e flores, fungos e líquenes, estropiando os planos de quem quer que fosse que concedia o destino neste mundo arruinado. Se tivesse de morrer uma outra vez, seria de pé, pois ditaria os argumentos que antecedem o meu Juízo Final e não deixaria de urrar o que me conduz a caminhar!
Ainda estonteado pelo que me aconteceu, tardei em me pôr de pé. A raiva que me libertou, não era a suficiente para controlar os meus pensamentos e permitir-me uma acção ainda mais concreta em tão pouco espaço de tempo. Assim, após longos momentos, avancei num rumo incerto…
Nada se ouvia, a não ser os meus passos… O mesmo cenário de horas atrás e, com cada passo, uma nova sensação de sonolência que tentava, impiedosamente, combater por saber o resultado. Assim, pus-me a correr, gritando a todo o fulgor como se a adrenalina induzida me libertasse do cansaço.
Não era este o meu lugar! Não era este o meu destino! Não era esta a minha vontade! Os meus gritos soavam como trovões, a minha alma soava como Vida… Sairia deste recinto de malvadez e encontraria uma saída… Já bastava de tanta desolação! Se era este o Inferno dos suicidas, quem me dera nunca o ter cometido!!! "