quinta-feira, setembro 08, 2011

Vídeo do livro "O cortejo das virtuosas solenidades"

O download do livro "O cortejo das virtuosas solenidades" pode ser feito em:

O meu 3º livro, O cortejo das virtuosas solenidades", disponível como e-book gratuito. São 8 contos sobre romances e tragédias, mistérios e descobertas, sonhos e pesadelos, inícios que são interessantes, meios um tanto estranhos e fins que dão meia pirueta estrambólica. A quem desejar ler algo que acompanhe bem a manhã, a tarde e a noite (a madrugada é por vossa conta...). http://www.mediafire.com/?v3b6d75usc4r1zb

O meu eco para além do vento (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

Penava pelos acontecimentos do dia enquanto caminhava… Este sabia-me a amargo, o esvair de dúvidas a cada passo, a solidão esmagando o sorriso, o brilho da harmonia sendo um fogo por queimar pois acariciava-me uma cegueira imperdoável, um coração sem eco. Não me sentia feliz pois se a vida me quer bem tem um jeito tão estranho de o demonstrar. Já estava farto de ter apenas contas a pagar, do cansaço que se apoderava do corpo sem desejo de o fazer dormir, daquela insonsa melodia que dizia à alma que mais valia estar morta. Não tinha um emprego a tempo inteiro e sei que mal me alimentava mas desejava dar a conhecer o que surgia do meu íntimo o mais depressa possível, as horas passando quando não trabalhava porque a escrita era aquele lampejo de sanidade que me distanciava do sinuoso trilho que é ter uma facada no coração. Aquela dor que só surge pelo facto de já não haver um amanhã que valha a pena…
Que faria aos minutos se estes se compunham de desprezíveis momentos em que a inspiração e a imaginação tardavam, os meus suspiros sendo apenas cansadas banalidades? Talvez nada mais do que desenhar no vazio com as palavras que o tormento faz cair…
Este era mais um dia e apenas um livro e uma capa com alguns dos meus escritos na mão esquerda perfaziam parte da pouca riqueza de que me podia orgulhar. Pretendia desanuviar, esquecer todo o mal que me tinha acontecido, e que, se não é uma maldição, é uma tragédia que a poucos acontece, talvez devendo sentir-me orgulhoso de ter algo mais para dizer do que contar as lágrimas que caem.
A esplanada a onde ia habitualmente não era luxuosa mas tudo que a rodeava fazia parte de um todo que muito me interessava; duas margens de uma mesma realidade que detinham magia e loucura. As pessoas e os seus hábitos peculiares, um jardim com frondosas árvores pintadas com as cores garridas da Natureza, os edifícios gritando ruína como se houvesse aquela necessidade de apagar o que era belo e criar uma outra beleza, esta mais fria, mecânica, sem qualquer encanto que a alma pudesse louvar.
Para quem ainda não sabe, tinha já escrito contos… Alguns tinham sido publicados numa revista de segunda categoria que poucas pessoas liam. Preparava o meu primeiro livro, um romance sobre o desespero que é vivermos para nós próprios, a interacção com o vazio, a confluência entre a sombra e a escuridão, talvez como a minha vida, talvez aquilo que era e o que ainda podia ser.
“Eram paredes de mar salgado que tingiam o meu caminho… e tudo o que me deixava contente estava no passado… as sobras de uma manhã sem abrigo…“
Enfim… Os meus passos eram de uma tal nostalgia que apenas me alegrava o facto de estar sentado perante um café e poder traçar o papel com uma caneta, desenhando no vazio com o que de mais valioso, ou não, podia traduzir da alma. Como alguns, a minha inspiração também surgia dos sonhos e apesar de, por vezes, sentir que tudo estava bem, os que tive em criança, de tão ridículos que eram, ainda me doíam. Isso talvez porque a solidão ainda me magoava, o facto de ter caminhado por vários anos muito bem acompanhado sendo a beleza que agora me faltava. Infelizmente, o inclemente desespero surgiu e o Tempo soube mostrar-me o que é ter de viver demasiado cansado sem o desejar.
Apesar de ser tão normal quanto os outros homens já me fartava ser palhaço nesta vida miserável em que a ruína é uma praga envenenada que dita que já não posso mais sorrir, em que as dívidas parecem ser gotas de angústia que retalham o meu aspecto franzino, a resposta a uma lágrima já sem sabor que corrói o íntimo… e tudo porque sofrer é uma arte.

A rosa e a madrugada (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

Apesar de o dia já ter fenecido, de os ramos das árvores bailarem irrequietamente e de a chuva banhar a terra de forma perturbante havia certas circunstâncias que me faziam bem.
O facto de estar dentro de uma sala e ter a vibrante sensação de abrigo, uma esperançosa fuga para além de todo o dramatismo criado pela tempestade. A luz de vários candelabros dispostos em locais estratégicos que parecia saudar-me com a boa aventurança que apenas o requinte de um certo romantismo poderia elevar. Por último, observava uma formosa mulher de cabelos louros e olhos castanhos que se distanciava da agreste envolvência da Natureza e regia o ar com deliciosas figuras estilísticas, a voz e o piano discorrendo sobre cenários de belos tons onde tudo o que era sublime transmitia serenidade.
A sua voz soava como a mais doce melodia de um anjo, a alegre sensação de cortesia perante a suave pintura de sorrisos e expressões de riqueza num véu de sensações inebriantes. Mal a tinha visto e já me sentia seduzido pois cantava uma alegre composição enquanto os seus dedos desenhavam contornos harmoniosos nas teclas do piano, tal sonho de moradias esfusiantes onde se regista a sensação de conforto. Não me lembrava de alguma vez ter ouvido tão majestosa obra mas tocava-me o coração conhecê-la e à sua intérprete, sentindo-me como se não houvesse um outro recanto que merecesse tal divina iluminação.
Parecia-me feliz, a sua expressão levando-me a sorrir, a desejar viver a sua alegria com as palavras que somente a concordância entre artistas poderia disseminar. Sim, também eu o era embora tocasse um instrumento cujas cordas tinham outro dinamismo.
O violino sempre foi o meu instrumento de eleição, os sons que dele se podia tirar tendo a liberdade de criar alegria ou tristeza, serenidade ou raiva. Sem pudor, dizia sempre que este elevava a alma a um recinto impermeável a todas as propriedades que a crua realidade poderia invocar. Além disso, havia maior liberdade para um artista por este poder tocar as mais belas peças mesmo sendo um andarilho sem casa.
Longos momentos passaram e tudo o resto parecia distante, a voz e o piano sendo figuras impressionantes num recital que não precisava de qualquer outro interveniente. Sentia-me feliz por ser um espectador, poder ser contagiado por tudo o que dela era, considerando uma honra estar perante tão grande nobreza e não desejando estar em algum outro lugar ou momento do que esse.
Sendo conhecedor da frutuosa emancipação que reveste o espírito, a minha ousadia pelo devaneio rasgava também este momento. A verdade é que o íntimo pode aprender com a harmonia a ser altivo, a libertar delicadeza atrás de delicadeza mas, mesmo assim, o que nos atrai também pode consumir o conforto quando existe uma certa conformidade com o que de mais trágico a Natureza concede. Ao silenciar a voz e o piano, o seu choro foi também a angústia no meu peito…
Abrindo os olhos, senti um aperto que me constrangiu e deixei as lágrimas escaparem, a minha face sendo banhada pela mesma dor que cortava a serenidade em tão divina mulher como se tudo o que me apercebia nela encontrasse eco em mim. De modo a que se sentisse um pouco melhor, decidi-me a tocar uma rica melodia no meu violino, uma forma de mostrar que existia algo mais do que a importância dada à mágoa. Primeiro, a sua expressão teve laivos de surpresa, depois aproximou-se da confusão e, finalmente, de um certo arrepio.
– Charles?! – disse, espantada – Charles, és tu?
Não me conhecia por tal nome. Aliás, não havia nome para mim mas deixei de tocar e, após colocar o violino e o arco em cima de uma mesa, aproximei-me dela.
– Não pode ser!!! – gritou, uma expressão de incredulidade desenhada na sua face.
– Desculpai-me, bela dama, mas não conheço quem me julga ser. Infelizmente, não me lembro do meu nome.
– Sou… Mas… não te lembras de mim? Mas… Não pode ser! Charles! Sou eu… Béatrice… Mas… isto é impossível… Charles não mais existe… está… morto…

Tenho um sonho como consorte (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

Acordei para um outro momento e parecia-me ter visitado séculos de que ninguém tinha memória, um sono com o louvor de jardins encantados onde pintar a fome, o desejo de cortejar as paredes da harmonia e do descanso com os olhos fechados, a cor de outrora sendo um ligeiro bem-estar que reluzia os lábios com o sorriso. Já não me lembrava de quando tinha dormido assim tão bem, o corpo conhecendo os trejeitos da mais viva substância onde não havia qualquer dor, os meus passos sendo tão leves quanto o ar, a alma insuflada pela alegria de ser este o mais maravilhoso dos dias que a minha jovem existência conheceu.
Iria-me casar… O belo homem que tanto seduzia cada sinuosidade da minha condição de mulher e me elevava o espírito a ser inundado de luz, sendo pródigo de uma arte tão maravilhosa que poderia dá-lo a conhecer como um anjo que o mundo viu nascer. Assim, com toda a vaidade elogiava os seus actos como sendo os mais próprios de quem sentia a riqueza que é lutar por sonhos e vê-los concretizados. Ele era a epítome de quem eu tinha sonhado para meu esposo…
A minha felicidade era tão grande que nem me importava que a inveja levasse certas pessoas a pensar que o estatuto que ele tinha me dava a inaudita sensação que inflama. Eu e o meu amado éramos mais do que elas poderiam alguma vez sentir pois o amor que nos conduzia era a divina concepção materializada em solo mortal. E alegremente vivia, a liberdade de traduzir o que de pitoresco inebria a Arte sendo as formas mais doces e luzidias de agraciar a vida com um valioso requinte.
Oh, não é por dizer isto que se deverá achar que me sinto mais do que todos os que aqui vivem! Apenas verto tamanha felicidade por as ricas cores pintadas no meu ser serem cenários incandescentes que surgiram com o mais elegante verbo que o linguajar acariciou. E assim elevo a minha voz a pronunciar que hoje é definitivamente o dia mais belo de toda a minha vida! Apetece-me dançar, cantar, sorrir e rir como se louca fosse porque louca me sinto de tão verdadeiro é este sentimento! Estaremos finalmente unidos ao fim do dia pela mais bela das poesias, o entoar do verdadeiro perfume que embevece a felicidade.
Sim, hoje o meu sorriso é dos mais sublimes que já tive e se não me importam as manhãs de outros dias em que olhava para o verdejante horizonte da propriedade pertencente ao meu pai, é porque todas elas tinham uma riqueza menor. Mesmo assim, antes de o meu escolhido ter-me dado a conhecer o seu encanto por mim todos os outros momentos tinham uma riqueza ainda menor e, estes, menor ainda do que a ocasião em que fez valer o desejo de se unir a mim para além da alma e do coração, a ponte mais íntima que apenas o matrimónio poderá suster.
Ah, tenho a louca vontade de gritar que tudo farei para que os momentos que surjam sejam ainda mais belos, nada de desencanto nos levando a guardar as sombras como paródia de outros sonhos. Essas, torpes nuvens baixas onde a melancolia ensina a viajar, já não farão parte da minha vida pois este dia, o mais belo de todos, terá ecos de louvor em outros momentos porque eu e o meu amado uniremos as nossas vidas e toda a magia que o amor celebra fará parte de nós. E, como o sonho está prestes a ser concretizado, sinto-me cada vez mais forte, rica, uma sede e uma fome insurgindo-se pelo meu ser como se apenas esse momento fosse o mais divino. Afinal, será conhecida a chama que o corpo de cada um possui, reparando qualquer mal que possa ter surgido com o desejo e a privação.
Sentindo-me carente, caio outra vez na cama e, tocando o meu corpo com aquela vontade que tão bem conheço, sinto já as suas mãos a fazerem-me sentir um ávido ardor, a presença de uma arte que enfeita o que é ensinado pela luxúria, as contorções de um glorioso prazer deliciando-se com o que é sublime. Deixando-me sorrir, recordo os seus beijos vibrando pelo meu pescoço, tal poética espalhando-se por mim como as ondas que o mar conhece, aquela suavidade que traz ao corpo fortuna.

Um brilho incerto em meio ao pó (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

Muitas vezes desejei ter nascido num outro lugar, num outro tempo e ser um homem livre que regesse o seu próprio destino. Outras vezes desejei que a divina essência se tivesse esquecido de entregar a minha alma a este corpo pois, por um odioso azar, sou fruto de um país envolto em singulares perdições tais como a negligência, a imoralidade e a guerra.
Nascido em meio a uma nobreza escondida pela bafienta cortesia, a meu ver o doloroso naufrágio de todas as virtudes disfarçado pela sumptuosidade, ensinaram-me as odiosas maquinações e pérfidas acções que enrubesciam os vitoriosos feitos de outrora. No entanto, essas detestáveis proezas não tinham qualquer mérito pois se o sangue de inocentes mancha um reino então o amaldiçoa para todo o sempre. E porque quereria viver amaldiçoado? Sem qualquer medo, digo que preferiria ter nascido numa rocha qualquer do que neste lugar tão verdejante onde nem a chuva ou o vento conseguem as nódoas limpar!
Após tantos anos, ainda penso o quão aviltante é a menção de que um simples pedaço de terra, ou uma honra maculada pelo egoísmo, possa ser mais importante do que o surgir da bem-aventurança, a cura para aquela miséria que é não ter melhores sonhos para sonhar. Afinal, que proveito traria à alma assassinar homens e mulheres, crianças e velhos, se o seu sangue tinha tanto valor quanto o nosso? Como seres dados ao sentimento e pensamento, vivemos o melhor que podemos por um determinado tempo, tal não devendo ser conspurcado pela cáustica doença de outros. O pior é que essa doença fazia os menos elevados em matéria de justiça a julgar-se de maior préstimo em tudo quando, a meu ver, por serem tão menores nem a uma larva poderiam ser comparados.
Passo a explicar… Apesar do que se considera correcto, a vida não é feita apenas de luz. Enquanto certas pessoas, estas detestáveis e arrogantes, não sentem a frieza da fome; outras, de menos sorte e maior virtude, têm de penar com o pouco que lhes é dado pelo fruto do seu trabalho. Da minha parte, e sem deixar de sentir um nó na garganta, tive o desprazer de conhecer certos aristocratas, donos de propriedades rurais. Se o maior requisito para a desumanidade é se considerar superior a quem provém das classes mais baixas, então posso dizer que tive a boa fortuna de não advir delas porque a tacanhez e a arrogância vestiam detestavelmente esses nobres. Se não fosse filho de um rei, um déspota que ridicularizava qualquer moral, de certeza que seria tratado como subalterno ou seja, um mero farrapo que só serviria para limpar o chão.
Sendo o mais novo de três irmãos, era diferente em diversas atitudes. Desanimado pelo que via e sabia era, infelizmente, sujeito a agir de determinada maneira devido a um nome e a um posto. Não me lembro de haver um segundo em que o verdadeiro sorriso tocasse o meu âmago tão grande era o peso de ter de viver consoante determinados requisitos. Como príncipe, a minha vontade era limitada, pois se afirmasse o meu descontentamento haveria quem dissesse que a ingratidão formava o meu ser, e tudo o que eu era não mais existiria. Isto como se apreciar os benefícios da Arte e desejar o bem a todos fosse um perigo para quem detinha o poder.
Foi através da minha mãe que descobri as maravilhas que existem além do toque funéreo das espadas e do asqueroso manto da depravação. Assim, comecei a apreciar a literatura, a música, a pintura e a escultura, uma grandiosa proeza que está longe de qualquer princípio passível de envergonhar o espírito. Não passava um dia que não escrevesse sobre os terrenos incongruentes das diversas realidades a que estava sujeito. Aquela que tinha de vivenciar, aquela que era dada a conhecer por outros e aquela com que sonhava. Sim, foram duros os anos em que a minha juventude viveu atormentada por ásperos toques mas sobrevivi pois, sendo a noite o meu único momento de sossego, conseguia desbravar de forma mais convicta essa riqueza que ia além do sangue.
Nesse espaço de tempo que devia ser o belo florescer de tudo o que se aprimora na vida adulta, os dias e noites latejavam sem o brilho da serenidade pois era a tristeza que marcava muito dessa vivência. Embora não fosse alheio aos prazeres carnais, não era raro sonhar com o verdadeiro amor. Desejava descansar abraçado ao corpo de uma mulher cuja essência trouxesse-me felicidade, a esplendorosa convicção de que era permitido renascer cada poro do meu corpo com as virtudes mais apetecíveis.
Para que serve ter um fardo que é sinónimo de loucura e ao mesmo tempo antónimo de tranquilidade? Por que razão se deve guerrear com estes e aqueles em busca de glórias, toscas riquezas que não servem para brilhar além do tempo de vida que nos é dado? Acaso serve mais a um homem saber que deixa uma herança adulterada por sangue e lágrimas? Por o reino do meu pai ser maldito, nunca a receberia…
Sabendo apenas que este só era fiel a si mesmo e que não se preocupava com a minha mãe, a sua esposa, desconhecia como agia com as outras mulheres com quem se relacionava. No entanto, ao descobrir no inicio da adolescência que a minha mãe tinha um amante, passei a tê-lo ainda menos em conta. Afinal, que podia dizer de negativo em relação à escolha da minha mãe se o meu próprio pai não se preocupava com o bem-estar dela? Uma união sem amor é o pior dos desertos, a mais vil iniquidade para quem só deseja a carícia do suave verbo.
Porque respeito a quem me respeita, prometi à minha mãe não dar a conhecer o seu segredo e, com o passar dos anos, desabafávamos sobre muito do que nos encantava e afligia. Ela era a única que me compreendia, sabendo que não me interessava a glória que advém de ser filho de um rei mas aquela que surge da Arte, neste caso a poesia, a criação de majestosidades regendo o que inebria a alma. A verdade sendo que, no meu íntimo, fervilhavam sentimentos contraditórios e palavras virtuosas seduzidas pela necessidade de expressão…
Com o passar do tempo, veio o findar do reinado do meu pai. Já que não era o primogénito e após uma conversa com o meu irmão, este mais benevolente, foi decidido que partiria. Precisava de aliviar o espírito de todas as falhas dos anos anteriores…
Não sei precisar quanto tempo se passou ou quantos lugares visitei mas surgiu o momento em que adormeci em paz e aquele em que acordei desorientado. Tudo era diferente do que conhecia e, mesmo assim, melhor… À minha frente, estava a mulher mais bela que alguma vez tinha avistado…

A arte das sombras aprisionadas (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

Como fruto maduro de uma desvirtuada sina, a noite em que dei os passos para realizar um certo plano era cativada por sombras dançantes, aquela firmeza trepidante que separa a calmaria da tempestade. Não me importava que chovesse, que o céu se aliviasse da sua virtude, porque a confiança era algo que estava sempre do meu lado e esta noite não havia qualquer dúvida ou medo nos passos a dar.
Fustigava o meu pensamento o facto de estar prestes a desvendar a arte de um pintor, Christopher Wilton Leonard, que apareceu como tal poucos anos atrás e cujos quadros tinham uma bizarra riqueza. Era um tanto interessante a forma como pintava os objectos e as pessoas, a sua extravagância vertendo traços fincados num estilismo soturno que a todos fazia vibrar. As cores usadas eram dispostas em tons tão estranhos, as poses para os elementos fulcrais dos quadros surgindo desequilibradas, pairando a divagação sobre o seu método e o advir dos temas.
Leonard tinha já algum reconhecimento no mundo das artes, considerado um fenómeno em crescimento que levava certos museus de mérito a querer expor a sua obra, mas agia de uma maneira tão estranha quanto o que criava porque não expunha em galerias sobejamente conhecidas. Recusava-as considerando que o enquadramento ideal para as suas criações era em sítios mais pequenos, mais rústicos e com uma iluminação menos activa, uma forma de estar mais próximo das suas raízes.
O seu trabalho tinha sido referenciado em artigos de diversos jornais e revistas que também tinham dado a conhecer alguns dos seus quadros. Numa determinada noite, tive a sorte de ver na televisão uma reportagem acerca dele e posterior entrevista. Reparei que não parecia muito atraído pelos incessantes elogios à sua obra e que não respondia de forma apelativa às perguntas que lhe eram feitas. Tal percepção era devido à sua pose rígida perante as câmaras como se elas criassem um mundo ao qual não estava acostumado. Se pensarmos bem, não era estranho assumir que ele se sentisse desenquadrado já que, como excêntrico pintor, pouco se importava com a realidade preferindo criar o seu próprio mundo.
Aquando da minha visita à sua última exposição percebi que tinha mesmo de levar a sua obra para a minha modesta galeria. Embora as suas pinturas não me atraíssem assim tanto, não podia descurar a oportunidade de ganhar algo com isso. Infelizmente, não me foi possível falar com quem desejava pois um artista tem de ser necessariamente caprichoso e Leonard nunca era visto de dia. No entanto, deixei as informações necessárias para um eventual contacto com um seu representante.
Foi através de muito suor e expectativas que cheguei a esta noite, várias semanas após a ida à exposição. O caminho sendo difícil, por vezes parecendo inatingível mas nunca, nem por um segundo, fazendo-me deixar de acreditar que iria conseguir. Afinal, já passei por muito na vida e sempre pude alcançar os meus objectivos.
Para meu desagrado, o céu revestia-se de melancolia, as nuvens emparelhando-se como se quisessem impedir um mero mortal de sonhar com as estrelas, de descobrir no seu pálido iluminar os traços de outras realidades onde nada nem ninguém se importava com este mundo imperfeito e poluído, tristemente vocacionado para a destruição.
Tinha deixado o carro um tanto ou quanto longe do lugar onde me encontrei com um homem de aspecto rubicundo, Dawson, que me levaria até à casa de Leonard. Segundo ele, assim havia menos oportunidade de alguém descobrir exactamente onde Leonard morava, de o incomodar ou até roubar, dessa forma ultrajando a sua arte com a ganância de quem não compreende o que é o fundamento da criação. Pois… Esse tão enigmático pintor parecia suspeitar de todos, as suas nuances psicológicas inferindo a afronta de perder a sua arte sem o desejar, o medo desta estar com quem não a compreendia, quem não sentia que ela precisava de uma atmosfera especial para ser verdadeiramente apreciada. Reflectindo ainda mais sobre o assunto, julgo que quem adquirisse a obra de Christopher Wilton Leonard seria louco ou pretendia não dormir muito…

Sob a neblina que me corta o sangue (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

Tinha onze anos quando a velha criada me contou o que pareceu ser demasiado estranho para ser verdade. No entanto, algo no seu bizarro olhar dizia-me que devia ter em conta as suas palavras: que a minha existência se devia a acontecimentos peculiares.
Segundo ela, o tempo anterior ao meu nascimento teve o despudor de malefícios, a minha mãe, Mireille, sendo sujeita a alucinações advindas do estado febril que lhe tocou durante a maior parte da gravidez. Nem a minha vinda a este mundo foi mais calma pois tal aconteceu numa noite de tempestade, prova de maus agoiros, em que se ouviam os uivos de lobos como se tivessem sido escorraçados de um qualquer recanto mais apaziguador e, famintos, lamentassem a sua desfortuna.
Foram muitos os cuidados para com ambos pois estávamos demasiado fracos após o parto. Por momentos, até pensaram que eu estivesse morto, mas, ao mesmo tempo que uma palmada no meu rabo foi dada, o mais feroz dos trovões foi ouvido, a tempestade aumentando de fulgor até que amainou para depois desaparecer.
O meu choro era a prova de que estava vivo mas a perda vitimou a minha mãe pois esta deixou de ser a mesma, a sua lucidez tendo desaparecido para dar lugar a um mutismo inquebrantável.
“ – Talvez a causa da sua silenciosa melancolia tenha sido o choque de ter o parto em tão odiosa noite”, disse a criada, mas não consegui deixar de pensar que talvez tenha sido eu a lhe tirar a voz de modo a dar a entender que vivia.
Não sei se teria uma infância normal se ela não me dissesse como tinha nascido mas, nos anos que se seguiram, tornei-me demasiado introspectivo, talvez devido ao respeito para com a minha mãe. Várias vezes, era toldado pela apatia, tomado por um certo distanciamento das horas claras, dos sorrisos e risos que cuidavam da harmonia. Em outras, mostrava maior interesse no que me rodeava, podendo até apresentar um ar mais arrogante e impulsivo. Para descrédito da minha condição de ser sensível, essas eram formas de abreviar a empatia com aqueles que me conheciam desde o meu nascimento.
Sendo o rebento mais jovem de uma família rica, tinha sempre alguém ao meu lado que me ensinava os assuntos mais pertinentes, dando-me linhas com as quais traçar os caminhos que levavam à intelectualidade. No entanto, tal como vinha, tão depressa ia, talvez já farto das minhas mudanças de humor e do aspecto um tanto leviano com que levava a aprendizagem. Tal não queria dizer que os meus professores não me considerassem inteligente pois até os surpreendia ao refutar certas das suas opiniões com argumentos que lhes pareciam válidos. Afinal, uma coisa é saber o que nos ensinam, outra é sentir um certo aborrecimento com a matéria dada e pretender mostrar que até somos capazes de raciocinar.
Já na minha adolescência mostrava um grande conhecimento sobre muitas coisas e, se não fosse assim tão estranho, talvez tivessem menos medo de mim. Bem, não sei se era mesmo medo mas o que pensar quando olham para nós com uma certa estranheza e ouvimos murmúrios quando pensam que não estamos a escutar?
Apesar do que queriam incutir-me, os meus hábitos privilegiavam afinco por certas matérias que sempre me tinham interessado, realçando todo o fulgor que é acariciar um conhecimento mais consentâneo com uma identidade própria. Com tal, pretendo dizer que não desejava saber apenas o que uma pessoa elevada pela “normalidade” iria saber mas algo mais: aquilo que escapava à compreensão mundana.
Um certo dia, quis afastar-me da mansão e recolher-me numa casa que ficava no final de um extenso jardim de modo a ter a minha paz e, aqueles que não me entendiam, a sua. Disse apenas que precisava de ponderar sobre certos conceitos elementares mas uma outra razão é que já estava farto de escutar que a minha vida era moldada por lamentos, devaneios e fantasias em relação ao mundo. Afinal, porque não deverei indagar acerca dos propósitos que nos definem e que a sociedade impede de visualizar? Será mais importante seguir os caminhos traçados pela tradição? Será melhor ser uma cópia barata de quem formulou ideias e ideais embora nada tenham a ver comigo?
Quantas vezes a minha voz seguiu a intensidade da do meu pai que me perguntava porque não podia ser como os meus irmãos, frutos de um casamento anterior, que tinham os olhos postos num futuro que ele designou. Rever-me em alguém, descobrir que não tenho identidade, enriquecer o ego de quem me fez nascer com a convicção de que eu não serei melhor, livre até, mas apenas um cuja vontade é muda… Caramba!!! Não o desejo para mim!!!

As carícias de uma magia enfraquecida (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

Os meus passos levavam-me para onde um aliciante recanto regia uma disfarçada riqueza, não me importando que a miséria pingasse sob os lamentos que encobriam uma tórrida graça. A minha alma, menos cândida do que a primeira das estações, padecia perante a cortesia do maldizer por pensarem que eu era louco quando apenas desejava afastar-me dos gritos que sufocavam e de uma paisagem que a ninguém verdadeiramente saudável importaria.
Desde criança que apenas encontrava descanso quando disposto perante as cores de outras eras, um manjar de intrépidas belezas que apenas com os mais belos sonhos condiziam. Não conhecia maior conforto do que lembrar que não era mais um dos que tornam a noite fria com os seus sarcasmos e afirmações pueris pois no meu peito revolvia aquele encanto já esquecido com o passar do Tempo, aquele cavalheirismo que é entoar prodigiosas melodias com o coração.
Devido aos dias serem frios, padecia de uma palidez que em nada fascinava, a chuva adulterando o que é ser belo quando se dá mais valor ao conforto de uma noite de harmonia. No entanto, apesar de sozinho, não desejava a presença de outras cores na minha vida quando era o amor que cortava a memória com o ácido sabor da tragédia…
O Sol estava prestes a distanciar-se quando entrei na floresta pois pretendia esconder-me do mundo e assim saciar a vontade com o encanto da solidão, sentindo aquele conforto que dissipa a cruel sociedade. Talvez muitos não o soubessem mas todos os minutos que passam sem desejo perdem a sua graça, um repetido desencanto que solta fraqueza e vazio quando se desperdiçam forças com quem não se importa connosco. Já estava farto de ter tão grande sofrimento e não o conseguir esquecer! A minha solução era apenas de este mundo partir, fugir para uma outra realidade onde tudo o que fosse luz pudesse adornar-me…
Sentado em frente a um lago, vendo o Sol morrendo, as suas cores se espalhando, olhava para a faca que tinha trazido. Seria ela o meu alívio, o meu bilhete para levar a minha vida a ser menos prisão…
Inspirando e expirando profundamente, deixei-me levar pela resolução final e, com um esgar de dor, senti a carne ser estraçalhada, o sangue jorrando dos meus pulsos como um rio que sabe para que lugar será conduzido. Era o fim de uma época de desencantos nascidos da esperança, o desejo de poder conhecer a liberdade que é não existir numa realidade tão cruel.
Súbito, um grito percorreu o ar e o meu ser foi tragado pelo que de inexplicável volteia na escuridão! As trevas encontravam-me e eu padecia por aparentar ser um servo, um dos caídos que tocavam langor atrás de cada desapontamento, um pálido respeito para com a eternidade.
Se alguma vez tinha conhecido a beleza, todos os sinónimos se tinham perdido ao avistar o que entonteceria até o mais febril e inspirado dos poetas, essa tão distinta riqueza sendo mais do que qualquer sonho que qualquer artista pudesse dar a conhecer… Ela, de pele tão branca como a neve e uns longos cabelos desenhados pelo rubor da chama, os olhos de tons azulados como se cortejassem o mar distante e uma boca tão sensual que se abria espantada pelo meu acto como se nunca tivesse conhecido a morte nem quaisquer propósitos que impeliam ao abismo. Uma mulher perfeita, não fosse o facto de que, a partir da sua cintura, podia ver um caule coberto de folhas e espinhos.
– Não se pode conhecer o paraíso cortando o elo que nos une à Vida – proferiu, a voz doce.
– Por vezes, temos demasiadas cicatrizes e não conseguimos suportar outras mais – respondi, o cansaço toldando-me a vontade, o espanto pintando-me a alma.
– As cicatrizes são feridas que choram sem poderem gritar e estas sempre temos. No entanto, existem luzes para além das que viajam pela noite…
– Se existem, nunca as encontrei… Sempre fui demasiado farrapo, ou assim me impeliam a acreditar, para que fosse possível as encontrar.
– Encontraste uma…
– Uma luz que se mostra estranha. Nunca pensei que um ser assim pudesse existir… Será que, prestes a morrer, é isto um dos sonhos que se pode ter quando moribundo?
– O que vês é a realidade. Por ser estranha não significa que seja menos verdadeira. Sou como sou porque assim quiseram…
– Estranho o elo que nos une quando sob diversas representações. Também sou como sou porque assim quiseram…
– E qual verdade é essa?
– Uma que talvez já não importe…

Como nuvens de seda na minha carne (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

As primeiras palavras de um relato devem ser sabiamente inspiradas de modo a chamar a atenção e criar interesse para que depois sejam lidas privilegiando um atributo inerente à curiosidade. No entanto, se o início é belo, não tem necessariamente de apresentar um cenário ou uma personagem em que a felicidade exista sem quaisquer remendos. Assim, para que este começo seja verdadeiro digo sem qualquer vergonha ou ironia que eu, o desafortunado, censurava o meu nascimento. Não sei se já o fizeram ou se encontraram alguém que o tenha feito, mas, acreditem-me, não me importava de não ter nascido.
Acalmem-se, esqueçam o choque, passo a explicar o porquê do meu descaramento…
Desde há muitos anos que padecia da má sorte que era viver onde a adversidade tem uma dilacerante voz. Embora nunca consentisse que o meu âmago fosse assolado pela iníqua abstracção, uma vil tempestade que ataca, desfigura e sentencia, esta sempre me fazia sofrer. Claro que sonhava com a beleza de melhores momentos, afinal há que haver um certo rubor de vez em quando, mas isso não era o suficiente para que me sentisse bem.
Porque a realidade deverá ser pintada com cores que afaguem a harmonia, seria bom que qualquer desejo pudesse ser concretizado, mas, se tal acontecesse, a ansiedade não existiria, o que poderia aborrecer aquela entidade que está além das
questões mundanas. Digo isto por achar que talvez tivesse nascido para ser um fantoche onde várias cordas estão partidas, qualquer coisa sem nexo ou crédito deambulando ao bel-prazer desse incómodo celestial.
Como já devem ter percebido, fui sempre dado a lastimar e não a profetizar, mas, como tudo na vida é estranho, o espanto sacudiu-me uma certa noite em que a minha alma era nervosamente escavada pela penúria…
Tinha ido para o meu quarto após mais um dia de melancólicos devaneios pois o arrepiante desenvolvimento de uma doença fazia o entusiasmo desaparecer e a solidão apenas aumentava a minha dor. No entanto, apesar de a mente compreender que o sono é preciso, a alma pode ser ingrata e não deixar o esquecimento surgir. Assim, sofria enquanto estava deitado na cama, virando-me incontáveis vezes de um lado para o outro, os lençóis e o cobertor envolvendo o corpo com uma tal frieza como se também conspirassem para o meu nervosismo. Se estes soubessem o quanto os detestava…
Silenciosamente, rogava pragas perguntando-me por qual razão nem a fadiga me fazia dormir. Será que os devaneios são maldições que infligem os pobres, os azarados e os doentes, o descanso sendo uma preciosidade sem graça que não sabe fazer sorrir? Se assim fosse, de que valia a pena viver?
Como sempre, o meu delírio era o absurdo de mais uma noite ansiando por um paraíso longínquo, aguardando uma simples viagem que me afastasse destes cinzentos sem graça e relíquias sem brilho. Não queria acordar para um mesmo reino, aquele que me conhecia há muito tempo, pois sabia que ninguém estaria ao meu lado. Sentindo-me como se tivesse sido amaldiçoado pelo desprezo, nada esperava que me pudesse agradar mas a incerteza é uma liberdade que afunda o momento e nos arrepia em trejeitos desconcertantes.
Surpreendi-me ao ouvir barulho quando o silêncio acobertava as noites passadas. No entanto, não tendo a leveza da fantasia, julguei depois que um vento mais forte tinha feito com que um qualquer objecto embatesse numa parte incerta do jardim que rodeava a casa. Pois… A realidade nunca espanta a quem está acostumado a tantas certezas, a verdade sendo que nunca senti que pudesse haver alegria em meio ao meu pranto, uma dança que enriquecesse o íntimo e transformasse as lágrimas em frutuosa esperança