sábado, fevereiro 21, 2009

"Sob a neblina que me corta o sangue" - Excerto

" Observando o jardim que era seduzido pela fantasmagórica dança de uma leve brisa, comecei a ponderar sobre a beleza que este mesmo lugar possuía à noite, a luz das lanternas desenhando intrigantes sombras no edifício de pedra e nas árvores circundantes. Ah! A facilidade com que se pode ordenar o caos, transpor uma certa seriedade para o que antes era confusão, deixando a alma tecer uma fascinante atmosfera que privilegie a sensatez. Embora haja pouco a que nos podemos agarrar quando a imaginação é desenfreada, talvez não seja pecado assumir que algumas formas sombrias possam parecer um corpo feminino, a sua sensualidade assumindo maior preponderância quando já temos gravado no íntimo um outro mais real do que a conjugação de luz e escuridão.
Deixando o Tempo voltar para trás, o meu pensamento caiu em Helanya, a formosa mulher que tinha vindo me servir o jantar. O seu encanto juvenil era por demais condizente com aquela que já tinha visto em certos quadros que retratavam deusas ou ninfas. Os seus longos cabelos castanhos apanhados num penteado singular, os olhos azuis esverdeados brilhando como se o céu diurno estivesse crivado de esmeraldas, os lábios vermelhos como se tivesse um grande fogo interior, o corpo escultural ficando-lhe bem.
Minutos passaram e quanto mais pensava nela mais me apercebia de que não conseguia deixar de pensar. Por mais que os livros me tivessem antes deliciado com os casos e acasos do destino, agora havia um outro fulcro da minha atenção e, estranhamente, esperava ansioso pelo dia a seguir.
Se fervia com uma outra loucura, a ansiedade de poder ouvir uma gentil voz que enaltecesse ainda mais a minha existência, talvez tal não me fizesse bem já que vim para este lugar para ter uma certa paz e não descobrir que, mesmo sozinho, não a podia ter.
Cansado, tentei esvaziar a mente de longos pensamentos sobre Helanya mas se a realidade se deseja de uma forma, a alma tem uma estranha capacidade para influenciar o corpo a acordar cansado, como se tivéssemos sonhos que, por nos lembrarmos, não pudéssemos impedir de nos influenciar.
Nesse tépido momento de abstracção, sentia o meu corpo ser acariciado, beijos e suspiros insinuando presenças etéreas que motivavam arrepios. Um som estranho fazia-se ouvir ao longe como uma interminável queda sobre a placidez, um gorgolejar repetindo-se a cada segundo como resposta ao desespero…
Tentava me acalmar pois o prazer que sentia com as carícias que me estavam a fazer eram sublimes mas a exaustiva repetição de outros sons tocavam-me de uma tal forma que parecia que iria enlouquecer. Queria abrir os olhos, conhecer quem estava a me tocar de forma tão doce mas também descobrir o que estava a provocar tais sons. Não sei quanto tempo me quedei preso a essas sensações de prazer pois, quanto mais as carícias se insinuavam mais confortável me sentia só que, de repente, comecei a sentir um gosto estranho na boca como se provasse sangue.
Levantando-me de repente, atormentado por tal provação, o pior dos calafrios cruzou-me o corpo ao descobrir que, à minha frente, estava uma tão grande monstruosidade que nem o mais horrível dos contos que tinha lido, até então, podia descrever. Um ser esguio de pele negra, o corpo coberto pelo que parecia escamas enquanto da cabeça surgia uma cabeleira também negra, e das costas umas asas que rivalizavam em forma com as dos morcegos. O mais aviltante era que, da sua boca, uma língua comprida tinha acabado de se soltar do meu peito que possuía, tal como os braços e pernas, inúmeros vergões como se tivessem sido submetidos a um chicote.
Enquanto tentava fazer o possível para não me sufocar com o sangue, vi a besta desaparecer rumo às sombras, um alívio que não me trouxe o verdadeiro estado que tal palavra representa pois o meu coração continuava a bater muito rápido, os nervos causando uma tal agonia que sentia que nem com a luz do sol poderia respirar normalmente. Fechando os olhos dado ao cansaço, senti que o sono vinha…
E acordei… Era já de dia e conseguia ouvir os pássaros entoando as melodias que só eles conseguiam compor, o corpo cansado pela minha provação nocturna. Num gesto rápido, olhei para o meu peito esperando ver os vergões que o ser tinha induzido mas o espanto e descanso foi maior ao me aperceber q$ue o meu corpo estava incólume. Um sonho, um horrível e pestilento sonho que me tinha causado um tal incómodo que havia parecido a crua realidade.
Foi então que, para minha surpresa, ouvi um leve toque na porta e a doce voz que tanto esperava surgiu. "