quarta-feira, março 07, 2012

O que de encantador se percebe...

Nasci numa tarde de sol altivo, preenchida por um vento que continha os cantos de outras eras. Despertei-me bem cedo, uma potência além de tudo o que atinava, concordava e se rebaixava à injusta notoriedade de um passado com muitos grilhões. Era jovem, obstinado e já o vento me conduzia ao grito! Sorridente, pus-me de pé, destemido, e gritei:
                “Não serei o que desejam que seja! Antes o asco, a tempestade e o abismo, do que o vosso tão plácido perfume!”
                Após isso, tentaram agarrar-me, abater todos os preceitos que consideravam imorais, arranhar esse iniciar de liberdade, sorver esse fôlego que era só meu e consagrar-me à sua maldita glória, mas eu fugi, saltando por cima de tudo e de todos, nada me importando se esbarrasse em ignorantes, religiosos ou ovelhas.
Abrindo os braços no alto de uma montanha, declamei toda a prosa e poesia que a minha alma pretendia, rasgando quaisquer cores que nada tivessem a ver com a minha satisfação. Os meus urros pareciam trovões que se reflectem na terra e voltam ao céu, tal era a hilaridade que ribombava de mim, até que, por fim, inquietei a Natureza.
Começou a chover, banhei-me em desvarios e necessidades, o frio apertava-me a carne ainda mais aos ossos e tiritava naqueles frémitos que se misturam ao coração. Tudo é uma consequência de uma inconsequência que nos faz abrir a consciência…
Faltava-me… Sim, faltava-me ela, uma dama que soubesse o que deveria ser, a profundidade de emoções e pensamentos que conseguisse aquecer o corpo para além de qualquer Inverno. Onde é que poderia encontrar tal ser? Em que parte do mundo existiria alguém assim, tão ideal para mim?
Foram longos os meses de deambulação, longas as noites de sonhos e distâncias, longas as manhãs em que acordava sozinho…
Um certo dia, cheguei a uma aldeia e dirigi-me para o centro da mesma. Ansioso, nervoso e latejante, a todos chamei para que soubessem que um poeta lhes iria presentear com as suas mais recentes obras. É claro que todas elas tinham aquele jeito tão irrequieto que é clamar pelo dia quando a noite aperta e sentir a noite quando o dia tem demasiado cansaço, mas a inspiração, aquela tão verdadeira que adoça o peito, não tardou a surgir pois vi uma mulher, entre as muitas que acorreram aonde eu estava.
Ela, de cabelos compridos e encaracolados, olhos brilhantes e sorriso divinal, parecia não perceber o que eu estava a dizer, talvez porque não sabia falar a mesma língua ou fosse meio surda.
Após mais ou menos meia hora de eloquentes divagações sobre os recintos de bom préstimo ao romance, à natureza e à disfarçada luxúria, cheguei ao final da minha exposição. Agradecendo os aplausos, sorrisos e dinheiro de quase toda a minha audiência, pois ela não se fez ouvir nem ver, aproximei-me dela e, perplexo, perguntei-lhe se as minhas palavras não lhe interessavam. Ela, num jeito tão peculiar, respondeu:
– Se tudo o que dissessem, aquecesse o meu coração, não seria única, mulher com uma boa alma, mas mais uma que se deixa levar pelas armadilhas de outros.
– E se eu te disser que, o que declamei, foi em nome de quem não conhecia, mas que desejava conhecer?
– Se não conhecias, declamarias para uma sombra, um espelho tão negro quanto um coração que não sabe a quem amar…
– Tudo o que um poeta cria é por necessidade, não por obrigação, e eu precisava de me conhecer, de saber o que o meu coração sentiria quando encontrasse a mulher dos meus sonhos...
– Um poeta que não sabe o que sentir quando ver a mulher dos seus sonhos? Como é que isso é possível? Acaso sabes tão pouco do que é o amor?
– Tem-se de descobrir o dia e a noite. Não há momento futuro que não seja um mistério… Sou apenas alguém que pretende conhecer a si próprio de modo a saber se reconheceria a mulher dos seus sonhos…
– Sonhas sempre com sombras?
– Os meus sonhos são enevoados, vejo figuras, nunca caras, sinto o toque, nunca acaricio, oiço palavras, nunca corações…
– Precisas de aprender… Tal leva o seu tempo…
– Tento ter o possível de paciência…
– Paciência… Sim, é preciso… Bem, desejo-te uma boa vida. Adeus.
– Não! Espera!
– Porquê?
– Quero conhecer-te melhor…
– Porquê?
– Porque… Bem… Intrigas-me…
– Em quê?
– No facto de que… Gosto de conversar contigo… Tal como em mim, vejo em ti muitos cenários que arrepiam…
– Sou apenas uma mulher que não gosta que a tentem conquistar em nome da futilidade.
– Não, também não o pretendo!
– Será preciso muito tempo para deixar-me levar…
– Não pretendo outra coisa…
– És assim tão paciente?
– Pela mulher dos meus sonhos, sim!
– Como sabe que eu sou?
– Como sabe que não é?
– Como sabe que é o meu?
– Como sabe que eu não sou?
E os anos passaram…


(escrito numa bela tarde de sol e muito vento, ao sabor de uma bica pingada, no miradouro de Sophia de Mello Breyner Andersen – Lisboa)

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