domingo, março 08, 2009

"A comédia de um teatro desvairado" - Romance (excerto)

“ Quem falou??? – perguntei, surpreendido, porque o meu raciocínio tinha sido apenas para mim, tão silencioso como o pensamento pode ser.
~ Olha para o arbusto ao pé de uma rocha que parece a face de um homem, perto de um lago menor…
“ Qual arbusto? Qual rocha? Qual lago? Quem és???
~ Oh, palerma destrambelhado, não és o narrador e, por tal, omnisciente? Não consegues ver um lago, uma rocha e um arbusto… juntos??? Estão mesmo debaixo de ti!!!
“ Não tenho corpo, como é que algo pode estar abaixo ou acima de mim?
~ Tantos narradores… E logo o mais bronco veio parar a esta história… Escuta lá… Não disseste antes que tinhas te afastado de um local onde os demónios tinham saído da terra, após fazeres com que tudo ficasse igual ao que antes era?
“ Sim… Como narrador, dou a conhecer ao leitor o que está a acontecer…
~ E porque raios pensas que eu não estou a ler a história????
“ Mas… Não és uma personagem?
~ Todos os leitores são personagens quando lêem a história e imaginam o que está a acontecer…
“ Não sei se isso funciona assim porque é o escritor que surge com as personagens e estas têm sempre uma certa estética física, espiritual, sentimental, moral… O leitor apenas… lê.
~ Raios e rastos de parvalhões!!! Acaba com a baboseira, se faz favor!!! Sou uma personagem da história mas também um leitor e já me farta estares sempre com pirosices que a nada levam!!! Aliás, qualquer personagem da história poderia saber o que está a narrar se quisesse mas nem todas têm o condão de poder se imiscuir pelos pensamentos do narrador como eu tenho.
“ Mas… Quem és???
~ Alguém que te pode ajudar a conquistar o teu devido lugar nesta história… se o quiseres.
“ Então mostra-te.
~ Já te disse onde estou!!! Procura-me se achares que te posso ajudar…
Perante um vasto recinto multicolor onde milhentas árvores, flores e plantas surgiam como prova de que os arco – íris podem existir sem ser no céu, pus-me a procurar o que parecia quase impossível de fazer. Afinal, quantos arbustos, rochas e lagos existem por aqui?
~ Palerma de uma tosca imbecilidade, não existem muitos lagos por aqui!!! Em vez de estares a procurar para além do horizonte, procura debaixo de ti!!!
“ Já estou farto que me chames de palerma e outros nomes!!! Toma muito cuidadinho com as palavras porque, como narrador…
~ Podes fazer com que desapareça da história, pôr outro no meu lugar blá blá blá A tua conversa da treta nem sequer amedrontou o estúpido Alexander, ia fazê-lo a mim que tenho um quociente de inteligência de 2000???
“ Isso é ridículo!!! Nunca ouvi falar de tal quociente!!! Como é que sabes que és assim tão inteligente???
~ Sou o único a falar contigo, não sou???
“ Isso não tem nada a ver com a inteligência! Sorte ou experiência em outras histórias é o que se pode pressupor. Com essa lenga – lenga toda só podes ser um convencido…
~ Como quiseres, também não te estou a pagar para falares bem de mim.
“ Nem iria pagar porque para ouvir tontices é só abrir bem os ouvidos e escutar.
~ Nem sequer vou perguntar como é que alguém sem corpo consegue ter ouvidos…
“ Humpf… Já agora, diz-me como é que me podes ajudar.
~ Não queres ter um corpo de modo a ser respeitado como uma personagem merece em vez de alguém que só tem uma voz?
“ Sim… Como é que conseguirias isso?
~ Não seria eu mas alguém que conheço e só te irei dizer se me encontrares.
“ E porquê teria de te encontrar primeiro? Porquê é que não podes dizer onde estás?
~ Porque caí dentro de uma cova próxima do arbusto que está ao lado da rocha perto de um lago inferior!!!!
“ É assim tão grande para saíres de lá?
~ Tenho a perna partida e… Então, vais me ajudar ou não?????
“ Estou a ponderar…
~ Cortes e malfadadas sortes de demências encardidas!!! A ponderar o quê??? Instantes atrás, querias ter um corpo e agora estás a ponderar???
“ Sim… Sendo um narrador sem corpo posso ir depressa para muitos lugares e ver a tudo e todos sem ser visto. Agora, se tiver um corpo…
~ O quê??? Agora queres ser um pervertido voyeur??? Que raio de homem és tu???
“ Sou um narrador sem corpo por isso não sei o meu sexo…
~ Não digas asneiras!!! Já todos sabem que…
“ Todos?
~ Sim, eu, os leitores e leitoras…
“ Ah! Pois… Isso, se alguém quiser comprar o livro…
~ Isso não interessa agora! Como estava a dizer… Se tiveres um corpo, és do sexo masculino, afinal, és o narrador e não a narradora!!!
“ Sim, tens razão mas…
~ Palerma inculto desfragmentado, aqui não há mas nem meio mas!!! Além disso, como narrador, não podes experimentar o contacto corpo a corpo e bem sabemos o que certas mulheres te fizeram sentir.
“ Bem…
~ Então? Não gostavas de sentir o toque ternurento de uma mulher que te aquecesse com as suas partes íntimas? Os seus lábios ternurentos e mãos apaixonadas a passearem pelo teu corpo como mel e fogo invocando prazer atrás de prazer…
“ Está bem! Está bem! Vou te ajudar!!! Mas parece ser difícil porque a paisagem é muito grande…
~ Caramba e aranhões descuidados!!! Já estou a ver que tenho mesmo de fazer tudo… Consegues parar o vento?
“ Sim, consigo, sou o narrador…
~ Sim, isso já se sabe, não precisas de dizer isso sempre! E depois eu é que sou o convencido… Para o vento agora!
Sem muito esforço, fiz com que o vento parasse, nem um silvo de descontentamento se ouvindo. Parecia até que tinha adormecido, deixando toda a flora sem razão para se balançar de um lado para o outro, parada, resolutamente convencida de que estava a ser concedida uma razão prodigiosa para descansar. Até parecia que o Paraíso tinha…
~ Oh podre rima sem fortuna!!! Vais parar de narrar ou observar atentamente???
“ Desculpa… É que, como narrador…
~ Blá Blá Blá Observa atentamente, oh amostra sem corpo…
Já me estava a fartar esta vozinha estúpida. Quem raios pensava que era para estar sempre a me chamar nomes??? Já não me chegava ter de estar a narrar esta história sem qualquer sentido e agora tinha de escutar desaforos??? Sinceramente, que se metam nas suas vidas e as tornem pacatas sem me meterem ao barulho!!! Quando tivesse um corpo, iria sair tentar desaparecer daqui, ir para os confins do mundo onde pudesse viver bem. Se eu… Que raios é aquilo??? Um fumo preto está a subir de um emaranhado de árvores e arbustos!
~ Já estás a ver o fumo???
“ Sim…
~ De onde surge é onde estou. Depressa, ajuda-me a sair daqui.
Uma vez mais usei o meu poder de persuasão para com a Natureza. As folhas, os ramos e os troncos das poucas árvores que antes cobriam o lugar de onde o fumo surgia, depressa desapareceram deixando surgir uma pequena clareira onde… Mas… Quem é aquela estranha criatura??? Parece um bebé com duas estranhas cabeças mas sem olhos, orelhas, nariz ou lábios, a parte debaixo da mesma sendo uma confusão de tecido e fartos cabelos castanhos!!! De repente, como se a surpresa não fosse grande, algo ainda mais inusitado aconteceu…
~ Oh disfarçada graça de trambolhos endemoninhados!!! O que estavas a ver era o meu rabo!!! A única forma de saberes onde estava era dar uns fraques - disse, após se endireitar, um homem tão pequeno que nem sequer chegava ao joelho de um ser humano normal. Da sua cabeça pendia uma farta cabeleira acastanhada, as suas roupas sendo uma mistura de diferentes tons de verde.
~ O meu nome é Hop Sory! – disse, de forma eloquente, enquanto os olhos brilhavam com o esplendor de esmeraldas.
~ Agradeço-te por me descobrires. Agora só falta me ajudares a sair daqui e irei te ajudar.
“ Gostava de saber como é que antes poderia tê-lo descoberto se não existe algum lago perto de onde está, mas, enfim… - um tanto aborrecido, lá fiz com que uma parte da cova caísse de modo a que surgisse um caminho até ao topo.
~ Não estás a ver o lago ao lado de uma rocha em forma da face de homem???? – disse, fazendo com que desviasse o olhar para uma grande poça de água e uma pedrinha. – E já agora, não estava à espera de uma miserável estrada de terra! Não te disse antes que tinha a perna partida??? Se fizeste o caminho, faz com que a minha perna volte ao seu lugar sem consequências para o meu desempenho físico de modo a depois eu poder te ajudar.
Ainda mais chateado do que antes com a sua estúpida forma de proceder, fiz do seu pedido realidade pois quem ganharia mais com a sua ajuda era eu. Afinal, tendo a forma de um homem, poderia cortejar as mulheres que quisesse, embora houvesse uma em especial a quem não me importava de conceder especial atenção. O que estaria a fazer agora a Lady Lenore Francesca Scarlet Hood? Será que estava a praticar a esgrima, a tomar um outro banho ou…
~ Vais parar com as tuas fantasias??? – disse Hop Sory, enquanto subia o caminho de volta até ao leito superior dando saltos quase gigantescos.
“ Todos temos direito a fantasias, não é verdade? Os teus pais devem ter uma grande imaginação para virem com um nome tão… estranho.
~ Sou um duende e temos os nomes que têm a ver com a nossa natureza.
“ O teu pai, quando a tua mãe lhe deu a conhecer que estava grávida, disse: “Ooops sorry”???
~ Palerma enjoado filho de uma mosca sem asas!!! Não brinques!!! Não foi isso que aconteceu!!! O meu sobrenome já tem muitos séculos, mais do que aqueles que contabilizam este em que vivemos!!!
Enquanto ria, via o duende sacudindo a terra da sua roupa, pondo depois uma pequena cartola esverdeada na cabeça, dando-lhe um ar distinto embora um tanto… sujo.
“ Está bem, está bem! Desculpa se ofendi, era para aliviar a situação. Já agora, não sei quem são os meus pais mas de certeza que provenho de uma família de ilustres narradores… Agora, como é que me podes ajudar???
~ Pois… Bem, como antes disse, não tenho poderes para te ajudar a te tornares um ser humano mas conheço quem pode.
“ Quem?
~ O Diabo.