quarta-feira, março 03, 2010

Toca-me um sumptuoso frio

Velado por um tormento que nasce tal cruel rebento
e onde as memórias já não têm a doçura que antes me fazia rir.
Pinto a saudade com a lágrima, corto a sombra com a desgraça,
e torno-me muralha de sonhos cansados que nada mais faz do que ruir.

A minha demanda já foi tranquila quando ainda não tinha nascido,
um sopro ainda por agarrar, uma carne por mastigar,
esfusiante mocidade agitando o espírito de forma triunfante.
Serei eu agora decadente, caindo em ilusão por apenas me lembrar?

Nessa altura era mais alegre do que um palhaço
mas deixei de o ser quando a sociedade me renegou.
Como boémio, senhor dos ares alcoolizados,
escritor que cria de um nada que só em mim tem eco,
mostrava-me demasiado inteligente para adorar quem com tontices me amaldiçoou.

Talvez o meu caminho seja brando e sem sentido
quando fantasmas e pedintes esquartejam a melindrosa noite.
Um naufrágio tão descontente que corta a calma de repente,
mostra mistério onde antes corria alegria e o torpor temido,
encontra o demónio à espreita de entoar a fogosa melancolia,
ai que se me perde o sangue neste peito ferido.

A confusão é um desencanto que me ensina a ser triste,
que me prende à carícia que é continuar sem rumo.
Levemente, a chuva esquarteja o meu espírito
como se não houvesse lugar que me quisesse
nem voz que me libertasse
deste abismo onde eu e a escuridão nos tornamos uno.

É por isso que a minha poesia vive sempre a esperança tombada,
a vil mancha que dança sem pudor na alma,
o torpe recinto onde as sombras residem amarguradas
sem saber porquê a solidão as quer confortar.

Como cortejo de mágoas estridentes
voam folhas e dançam fadas como loucas desvairadas,
uma ânsia de querer esquecer o que as horas sempre trazem,
porque o que é cor morre com o Outono e as nódoas detestadas.
Ah que rujo à má sorte porque sempre desejei viver!!!

A minha sina é que sempre dilacero o momento
e sem querer troco o jeito pelo estonteado lamento,
um reles construtor sem qualquer riqueza.
Amante de frágil constituição,
durmo porque o dia já há muito que caiu.
Sonho com a ilusão, peço a todos atenção,
mas sei que é apenas o tédio no meu íntimo já podre,
a luz transformando-se em um desejo que sem voz fugiu.

Neste recinto descontente onde os meus passos acabam,
pairam poeiras de todas as miragens sem sentido.
Em deprimente dissertação, pondero, tolero e tal como num canto sem esmero,
repito os porquês de o fogo não ter vontade de me enfurecer.

Oh se as ninfas de voz caída as mágoas entoam,
se os deuses libertam frutuosa palidez,
se os fantasmas não querem descanso e visitam parentes,
porque não me lembra o dia a paz quando é preciso?
Talvez porque pense que a minha poesia lembra um pouco a Narciso…

Sozinho, após descansar o corpo num leito imundo,
bebo deste charme que é enlouquecer sem proveitosa melodia.
Envaidecido, peço músicas que alimentem e não gritos que afugentem,
mas que fazer?
A alvorada ainda vem longe
e já perto da cortina que a tudo esconde paira o meu ser.

Pois…
Se existe um paraíso, de certeza que para lá não vou
pois sou preciso no inferno como professor.
Um amante que cobre buracos com palavras,
que lateja a carne com a rosa já erguida,
que ataca e dilacera o vazio que a mente corrói,
vil e doce língua cujo crime é morar em pecado onde já não estou.

Chama agora por mim o império dos corvos e dementes,
onde flui a grande dor de já não haver rima.
A inspiração acaba-se com a minha morte em tons de carmim,
já nada mais tem sabor…
Estou além de vós, quebro um sorriso por fim.

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