sábado, março 20, 2010

De um encanto preso ao amanhecer (Excerto - Conto)

O que antes era um murmúrio, uma leve nota de grandeza, gradualmente se deu a conhecer como a doce voz da mulher que amava, a serenidade que antes conhecia abatendo-se com as palavras que soltou:
- Precisas de ajuda!!! Não vês que estou morta?
Por longos momentos a fitei, o silêncio contradizendo o turbilhão que troava pela minha alma. Vê-la tão bela quanto o primeiro dia em que a tinha conhecido, o seu longo cabelo preto adornando uma face oval onde os olhos azuis enunciavam elegância e cortesia. Entristeceu-me pensar que estava a ficar louca…
- Porque brincas? Acordo e em vez de um beijo, dizes tal coisa?
- Mas é verdade! Estou morta! Já morri há muito tempo mas não o sabes… Precisas de ajuda!!!
- Pára com isso!!! Já não estou a gostar da brincadeira!!!
- Não é brincadeira, amor… Tens uma vida para viver… Recomeçar a sorrir, esquecer este mundo… a mim…
- Pára!!! Se te queres divorciar então diz, não me faças isto… Eu amo-te… Amo-te imenso mas também saberei respeitar e compreender as tuas vontades…
- O que digo nada tem a ver com o amor… É a verdade… Já não existo… Estou morta há muito tempo…
- Nãooooooooooo!!!!!!!! Pára de me quereres enlouquecer!!! Deixa-me… Deixa-me sozinho…
- Sim, é o melhor… Irás descobrir por ti próprio…
- Descobrir? Apenas quero que me trates como antes e não como se tudo o que considerava que eras nada tivesse de belo para me fazer sentir bem…
- Sou a mesma que antes… mas tudo mudou… O mundo muda, sabias? Não podemos controlar o Tempo… enfim… talvez… um dia…
E com estas palavras saiu da sala, deixando-me sentado no sofá, os olhos lacrimejando por o intimo ter conhecido as palavras mais loucas que alguma vez a mulher que amava tinha pronunciado.
Não sabia o que estava a acontecer, a veracidade do que dizia sendo posta claramente em causa porque se a via respirar, tão bela como a tinha visto em outros dias, algo de certeza devia ter acontecido para agir de forma tão estranha. Enquanto conversávamos, não lhe tinha notado qualquer contusão na cabeça, uma pancada que mostrasse que algum acidente pudesse ter ocorrido. Então que outra explicação poderia haver para agir assim???
A minha mulher não estava nada bem e algo teria de ser feito para a ajudar. Tão jovem… Porquê é que, quando se pensa que a Vida nos concede bons frutos, quando o futuro surge risonho, existe sempre algo que nos mostra as portas da Loucura?
Só nos tínhamos casado há um ano e meio e éramos felizes após as agruras de pálidos momentos que não se mostraram tão belos assim para serem recordados, tempos difíceis em que éramos marcados pela dor que apunhalava a harmonia e o sorriso que vivia destroçado, uma trágica relíquia enunciada pela áspera existência e que nem o amanhecer conseguia enriquecer. Tal como eu, ela conheceu a nostalgia das lágrimas, a injúria de ter feito planos sempre que uma relação amorosa começava mas a verdade é que ninguém nos merecia mais do que nós os dois descobrimos merecer.
Talvez a Vida tivesse um plano em relação ao amor que merecíamos, dando-nos outras experiências de modo a podermos conhecer a nós próprios e ao que realmente desejávamos. As cicatrizes deixadas por segundos de angústia ainda perduravam mas já não tinham a força de quando eram feridas e latejavam inclemente dor.
Sim… Apesar da minha tristeza, ainda me lembro do seu sorriso quando a conheci, os olhos azuis brilhando ainda mais do que o céu límpido naquele dia de Primavera. Sentada num banco de jardim, lia um livro que continha a poesia de Baudelaire e parecia resplandecer ainda mais a cada página que lia como se cada verso contivesse uma riqueza que, naquele momento, era só sua, embora não pudesse haver maior beleza do que ela mesma.
Como escritor que sou, um amante das palavras que se apaixonam e que em magia se deleitam, perguntei-lhe se podia me sentar no banco de modo a ler calmamente um dos mais belos livros de Rose Tremain de nome “Música e Silêncio”. Agradou-me saber que ela conhecia a autora e que já tinha lido o livro e não durou muito até as palavras que surgiam não fossem aquelas presas às folhas de papel.
A sua delicadeza e paixão para com a literatura me fascinaram e quando descobri que também escrevia soube ter encontrado o sonho mais perfeito, pois em tudo ela respirava uma doce entoação, aquele brilho que surge quando já não nos sentimos sós. Talvez pareça fácil para quem escreve encontrar adjectivos para a mulher por quem nos estamos a apaixonar mas nem sempre nos conseguimos distanciar da mudez, do soluço, da quietude, do facto de que só conseguimos contemplar.... e mais nada.
Foram belos os dias que vieram, cada momento sendo uma forma de nos darmos a conhecer como ninguém o quis antes fazer embora tanto eu como ela conseguíssemos transmitir o que o íntimo criava com a brilhante escrita.
Ela, como a chama que lhe indicava o caminho a percorrer, escrevia uma rica poesia onde a emoção viajava por conturbados momentos onde a doçura deixava a sua fragrância. Eu, talvez como um anjo que sabe o que era a noite, era conhecido por conjugar estranhos enredos perfilhados de invulgares personagens e assim sintetizar de formas um tanto caóticas o que o pensamento, o sentimento e a imaginação produzem. Apesar disso, a minha vida fora dessas histórias não era assim tão brilhante pois, por dentro, sentia um vazio que era o coração que não tinha cor nem vontade de sorrir e ela, uma deusa sem igual, compreendia isso pois também já tinha tropeçado na decepção. Era o destino nos conhecermos…
Levou-nos um mês a sentir os lábios de cada um, pois o medo de termos outra vez o sofrimento fazia-nos quietos, tentando deixar a melodiosa agonia dormente, as palavras sendo todas excepto aquelas que já estávamos a sentir. Apesar disso, a partir do momento em que os nossos corpos tiveram a liberdade para se unirem, surgiu a paixão que é amar sem limites, invocando os mais poéticos dos adornos que apenas um harmonioso amanhecer conhece.
Suspirando, sentindo o corpo tremer devido ao nervosismo, deixei as recordações para trás, levantei-me e caminhei pela sala tentando diminuir a ansiedade que advinha dessa maldita preocupação que é descobrir que a minha amada estava enlouquecida.
Se saísse e espairecesse um pouco, talvez pudesse chegar a uma solução para o problema, a razão por detrás do acto tresloucado da minha mulher sendo algo que deveria ser investigado. Infelizmente, não era médico nem cientista, apenas um escritor, alguém que revestia as páginas em branco com o encanto e o desencanto da alma e que neste instante voltava a sofrer.
As minhas lágrimas tinham o sabor mais amargo que alguma vez provei pois eram prova da saudade dos doces tempos em que o amor me tinha concedido a verdadeira felicidade. Porque é que ela tinha enlouquecido? O que a tinha feito vir com tais loucas afirmações? Seria isto tudo um pesadelo e iria acordar sabendo que ela não estava morta, que a Vida ainda me oferecia a riqueza que apenas a sanidade concede? Se isto fosse um mundo etéreo preso ao sono, teria de seguir um plano superior e não aquele que pretendia?
Raios! Porque tantas indagações têm de aparecer? Nas minhas histórias, surge sempre a loucura como apanágio dos que vagueiam empobrecidos pela desilusão mas não a quero na minha vida! Que me deixem ser feliz como mereço, como todos merecemos!!! Já é tempo…

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