Era a primeira manhã de Primavera de 1858 após meses de solidão invernal. Tal como percorro o Tempo com o perfume agridoce da memória, percorríamos, com os nossos passos, uma floresta inusitadamente densa e coberta de milhentas cores que apenas a Natureza soube imaginar.
Era esta a época do nascimento, do renascimento, da inovação, da renovação, dos olhares que se cruzam, dos apertos no coração. Para nós um período festivo consagrado à amizade que nos unia desde a infân7cia ao mais platónico dos amores, a um acordo tácito que nos ligava além dos dotes de qualquer mundana paixão.
Éramos ambos ainda abençoados por tão bendita estação e não imaginávamos voar para além dos poucos anos que revestiam os nossos corpos. A Arte fizera-nos curiosos, a Vida aventureiros mas sabíamos que a nossa verdade nos dizia muito mais. Nunca deixaríamos a floresta que nos tinha sempre abrigado.
Com os sorrisos que nos enfeitavam a face, sentíamos que fervilhava uma maior alegria ao nosso redor, tudo por uma amizade ainda criança que sustinha as nossas almas abertas para o magnífico horizonte deposto pelos deuses para adoração dos simples mortais. Consagrado a pintores que bebiam da beleza, o cenário verdejante irrompia banhado pela esfera cintilante que assomava o céu diurno. O Tempo, que nos tinha feito nascer, nos tinha mudado de diferentes formas. Eu, do aspecto franzino e pouco interessante, tinha crescido em tamanho e robustez, em sensibilidade e cultura. Ela, do aspecto desengonçado e tímido, tinha adquirido alguns centímetros a mais e curvas voluptuosas, delicadeza e inteligência. Afinal, este era o prólogo da vida adulta e apenas tínhamos pouco mais de 17 anos.
Para que não haja sobressaltos, seduz-me a ideia de suster nas minhas lágrimas todas as memórias que contiveram a plenitude da juventude, um leito rico de frutuosas ilações que apenas o Tempo concebe e que nenhum rico ou pobre é impedido de conhecer.
Para além de reconhecer uma certa empatia em todas as maravilhas que contemplávamos, algo mais nos aproximava, algo que tinha desdém ao jocoso arabesco que os olhos enriquecem. Desde há vários anos que a infância nos tinha ensinado a partilhar pensamentos e sentimentos tal como um jogo que liberta a alma das correntes que a aprisionam à indesejada solidão.
Nos meus sonhos, ainda ocorrem imagens de espelhos líquidos que a Natureza soube plantar nas planícies desalinhadas encravadas em terra firme, falsas gémeas do mar. Não me sentia conduzido a um sentimento de empatia com a água, antes o fulgor que revestia as saudades de um amor e da memória do dia em que vi Elizabeth, sentada à beira de um lago, procurando o seu manto liquido tocar.
Foi nesse mesmo momento que o meu coração soube viver para além do corpo. Viesse dia ou noite, chuva ou sol, brisa ou vento e até um milhão de tempestades como prenúncio do apocalipse e nem de um milímetro de um tão perfeito amor poderia eu afastar-me!
A partir de então, fui cobiçado pelo nervosismo, regido por uma tal erupção de sentimentos que nenhum outro pensamento conseguiria idealizar além daquele em que declamava toda a prosa e poesia que a alma e o coração conseguem invocar. Éramos perfeitos no nosso diminuto reino de luz e alegria, conforto e bem-estar, a inveja de quem já perdeu a razão de viver nada tendo a ver connosco. Se estivéssemos a mil léguas de distância, tal não seria suficiente para separar as nossas almas, a certeza de que não existiria nenhuma forma verbal que corroesse os pensamentos da devoção que nos banhava.
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