quinta-feira, setembro 08, 2011

Um brilho incerto em meio ao pó (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

Muitas vezes desejei ter nascido num outro lugar, num outro tempo e ser um homem livre que regesse o seu próprio destino. Outras vezes desejei que a divina essência se tivesse esquecido de entregar a minha alma a este corpo pois, por um odioso azar, sou fruto de um país envolto em singulares perdições tais como a negligência, a imoralidade e a guerra.
Nascido em meio a uma nobreza escondida pela bafienta cortesia, a meu ver o doloroso naufrágio de todas as virtudes disfarçado pela sumptuosidade, ensinaram-me as odiosas maquinações e pérfidas acções que enrubesciam os vitoriosos feitos de outrora. No entanto, essas detestáveis proezas não tinham qualquer mérito pois se o sangue de inocentes mancha um reino então o amaldiçoa para todo o sempre. E porque quereria viver amaldiçoado? Sem qualquer medo, digo que preferiria ter nascido numa rocha qualquer do que neste lugar tão verdejante onde nem a chuva ou o vento conseguem as nódoas limpar!
Após tantos anos, ainda penso o quão aviltante é a menção de que um simples pedaço de terra, ou uma honra maculada pelo egoísmo, possa ser mais importante do que o surgir da bem-aventurança, a cura para aquela miséria que é não ter melhores sonhos para sonhar. Afinal, que proveito traria à alma assassinar homens e mulheres, crianças e velhos, se o seu sangue tinha tanto valor quanto o nosso? Como seres dados ao sentimento e pensamento, vivemos o melhor que podemos por um determinado tempo, tal não devendo ser conspurcado pela cáustica doença de outros. O pior é que essa doença fazia os menos elevados em matéria de justiça a julgar-se de maior préstimo em tudo quando, a meu ver, por serem tão menores nem a uma larva poderiam ser comparados.
Passo a explicar… Apesar do que se considera correcto, a vida não é feita apenas de luz. Enquanto certas pessoas, estas detestáveis e arrogantes, não sentem a frieza da fome; outras, de menos sorte e maior virtude, têm de penar com o pouco que lhes é dado pelo fruto do seu trabalho. Da minha parte, e sem deixar de sentir um nó na garganta, tive o desprazer de conhecer certos aristocratas, donos de propriedades rurais. Se o maior requisito para a desumanidade é se considerar superior a quem provém das classes mais baixas, então posso dizer que tive a boa fortuna de não advir delas porque a tacanhez e a arrogância vestiam detestavelmente esses nobres. Se não fosse filho de um rei, um déspota que ridicularizava qualquer moral, de certeza que seria tratado como subalterno ou seja, um mero farrapo que só serviria para limpar o chão.
Sendo o mais novo de três irmãos, era diferente em diversas atitudes. Desanimado pelo que via e sabia era, infelizmente, sujeito a agir de determinada maneira devido a um nome e a um posto. Não me lembro de haver um segundo em que o verdadeiro sorriso tocasse o meu âmago tão grande era o peso de ter de viver consoante determinados requisitos. Como príncipe, a minha vontade era limitada, pois se afirmasse o meu descontentamento haveria quem dissesse que a ingratidão formava o meu ser, e tudo o que eu era não mais existiria. Isto como se apreciar os benefícios da Arte e desejar o bem a todos fosse um perigo para quem detinha o poder.
Foi através da minha mãe que descobri as maravilhas que existem além do toque funéreo das espadas e do asqueroso manto da depravação. Assim, comecei a apreciar a literatura, a música, a pintura e a escultura, uma grandiosa proeza que está longe de qualquer princípio passível de envergonhar o espírito. Não passava um dia que não escrevesse sobre os terrenos incongruentes das diversas realidades a que estava sujeito. Aquela que tinha de vivenciar, aquela que era dada a conhecer por outros e aquela com que sonhava. Sim, foram duros os anos em que a minha juventude viveu atormentada por ásperos toques mas sobrevivi pois, sendo a noite o meu único momento de sossego, conseguia desbravar de forma mais convicta essa riqueza que ia além do sangue.
Nesse espaço de tempo que devia ser o belo florescer de tudo o que se aprimora na vida adulta, os dias e noites latejavam sem o brilho da serenidade pois era a tristeza que marcava muito dessa vivência. Embora não fosse alheio aos prazeres carnais, não era raro sonhar com o verdadeiro amor. Desejava descansar abraçado ao corpo de uma mulher cuja essência trouxesse-me felicidade, a esplendorosa convicção de que era permitido renascer cada poro do meu corpo com as virtudes mais apetecíveis.
Para que serve ter um fardo que é sinónimo de loucura e ao mesmo tempo antónimo de tranquilidade? Por que razão se deve guerrear com estes e aqueles em busca de glórias, toscas riquezas que não servem para brilhar além do tempo de vida que nos é dado? Acaso serve mais a um homem saber que deixa uma herança adulterada por sangue e lágrimas? Por o reino do meu pai ser maldito, nunca a receberia…
Sabendo apenas que este só era fiel a si mesmo e que não se preocupava com a minha mãe, a sua esposa, desconhecia como agia com as outras mulheres com quem se relacionava. No entanto, ao descobrir no inicio da adolescência que a minha mãe tinha um amante, passei a tê-lo ainda menos em conta. Afinal, que podia dizer de negativo em relação à escolha da minha mãe se o meu próprio pai não se preocupava com o bem-estar dela? Uma união sem amor é o pior dos desertos, a mais vil iniquidade para quem só deseja a carícia do suave verbo.
Porque respeito a quem me respeita, prometi à minha mãe não dar a conhecer o seu segredo e, com o passar dos anos, desabafávamos sobre muito do que nos encantava e afligia. Ela era a única que me compreendia, sabendo que não me interessava a glória que advém de ser filho de um rei mas aquela que surge da Arte, neste caso a poesia, a criação de majestosidades regendo o que inebria a alma. A verdade sendo que, no meu íntimo, fervilhavam sentimentos contraditórios e palavras virtuosas seduzidas pela necessidade de expressão…
Com o passar do tempo, veio o findar do reinado do meu pai. Já que não era o primogénito e após uma conversa com o meu irmão, este mais benevolente, foi decidido que partiria. Precisava de aliviar o espírito de todas as falhas dos anos anteriores…
Não sei precisar quanto tempo se passou ou quantos lugares visitei mas surgiu o momento em que adormeci em paz e aquele em que acordei desorientado. Tudo era diferente do que conhecia e, mesmo assim, melhor… À minha frente, estava a mulher mais bela que alguma vez tinha avistado…

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