quinta-feira, setembro 08, 2011

A arte das sombras aprisionadas (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

Como fruto maduro de uma desvirtuada sina, a noite em que dei os passos para realizar um certo plano era cativada por sombras dançantes, aquela firmeza trepidante que separa a calmaria da tempestade. Não me importava que chovesse, que o céu se aliviasse da sua virtude, porque a confiança era algo que estava sempre do meu lado e esta noite não havia qualquer dúvida ou medo nos passos a dar.
Fustigava o meu pensamento o facto de estar prestes a desvendar a arte de um pintor, Christopher Wilton Leonard, que apareceu como tal poucos anos atrás e cujos quadros tinham uma bizarra riqueza. Era um tanto interessante a forma como pintava os objectos e as pessoas, a sua extravagância vertendo traços fincados num estilismo soturno que a todos fazia vibrar. As cores usadas eram dispostas em tons tão estranhos, as poses para os elementos fulcrais dos quadros surgindo desequilibradas, pairando a divagação sobre o seu método e o advir dos temas.
Leonard tinha já algum reconhecimento no mundo das artes, considerado um fenómeno em crescimento que levava certos museus de mérito a querer expor a sua obra, mas agia de uma maneira tão estranha quanto o que criava porque não expunha em galerias sobejamente conhecidas. Recusava-as considerando que o enquadramento ideal para as suas criações era em sítios mais pequenos, mais rústicos e com uma iluminação menos activa, uma forma de estar mais próximo das suas raízes.
O seu trabalho tinha sido referenciado em artigos de diversos jornais e revistas que também tinham dado a conhecer alguns dos seus quadros. Numa determinada noite, tive a sorte de ver na televisão uma reportagem acerca dele e posterior entrevista. Reparei que não parecia muito atraído pelos incessantes elogios à sua obra e que não respondia de forma apelativa às perguntas que lhe eram feitas. Tal percepção era devido à sua pose rígida perante as câmaras como se elas criassem um mundo ao qual não estava acostumado. Se pensarmos bem, não era estranho assumir que ele se sentisse desenquadrado já que, como excêntrico pintor, pouco se importava com a realidade preferindo criar o seu próprio mundo.
Aquando da minha visita à sua última exposição percebi que tinha mesmo de levar a sua obra para a minha modesta galeria. Embora as suas pinturas não me atraíssem assim tanto, não podia descurar a oportunidade de ganhar algo com isso. Infelizmente, não me foi possível falar com quem desejava pois um artista tem de ser necessariamente caprichoso e Leonard nunca era visto de dia. No entanto, deixei as informações necessárias para um eventual contacto com um seu representante.
Foi através de muito suor e expectativas que cheguei a esta noite, várias semanas após a ida à exposição. O caminho sendo difícil, por vezes parecendo inatingível mas nunca, nem por um segundo, fazendo-me deixar de acreditar que iria conseguir. Afinal, já passei por muito na vida e sempre pude alcançar os meus objectivos.
Para meu desagrado, o céu revestia-se de melancolia, as nuvens emparelhando-se como se quisessem impedir um mero mortal de sonhar com as estrelas, de descobrir no seu pálido iluminar os traços de outras realidades onde nada nem ninguém se importava com este mundo imperfeito e poluído, tristemente vocacionado para a destruição.
Tinha deixado o carro um tanto ou quanto longe do lugar onde me encontrei com um homem de aspecto rubicundo, Dawson, que me levaria até à casa de Leonard. Segundo ele, assim havia menos oportunidade de alguém descobrir exactamente onde Leonard morava, de o incomodar ou até roubar, dessa forma ultrajando a sua arte com a ganância de quem não compreende o que é o fundamento da criação. Pois… Esse tão enigmático pintor parecia suspeitar de todos, as suas nuances psicológicas inferindo a afronta de perder a sua arte sem o desejar, o medo desta estar com quem não a compreendia, quem não sentia que ela precisava de uma atmosfera especial para ser verdadeiramente apreciada. Reflectindo ainda mais sobre o assunto, julgo que quem adquirisse a obra de Christopher Wilton Leonard seria louco ou pretendia não dormir muito…

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