quinta-feira, setembro 08, 2011

Sob a neblina que me corta o sangue (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

Tinha onze anos quando a velha criada me contou o que pareceu ser demasiado estranho para ser verdade. No entanto, algo no seu bizarro olhar dizia-me que devia ter em conta as suas palavras: que a minha existência se devia a acontecimentos peculiares.
Segundo ela, o tempo anterior ao meu nascimento teve o despudor de malefícios, a minha mãe, Mireille, sendo sujeita a alucinações advindas do estado febril que lhe tocou durante a maior parte da gravidez. Nem a minha vinda a este mundo foi mais calma pois tal aconteceu numa noite de tempestade, prova de maus agoiros, em que se ouviam os uivos de lobos como se tivessem sido escorraçados de um qualquer recanto mais apaziguador e, famintos, lamentassem a sua desfortuna.
Foram muitos os cuidados para com ambos pois estávamos demasiado fracos após o parto. Por momentos, até pensaram que eu estivesse morto, mas, ao mesmo tempo que uma palmada no meu rabo foi dada, o mais feroz dos trovões foi ouvido, a tempestade aumentando de fulgor até que amainou para depois desaparecer.
O meu choro era a prova de que estava vivo mas a perda vitimou a minha mãe pois esta deixou de ser a mesma, a sua lucidez tendo desaparecido para dar lugar a um mutismo inquebrantável.
“ – Talvez a causa da sua silenciosa melancolia tenha sido o choque de ter o parto em tão odiosa noite”, disse a criada, mas não consegui deixar de pensar que talvez tenha sido eu a lhe tirar a voz de modo a dar a entender que vivia.
Não sei se teria uma infância normal se ela não me dissesse como tinha nascido mas, nos anos que se seguiram, tornei-me demasiado introspectivo, talvez devido ao respeito para com a minha mãe. Várias vezes, era toldado pela apatia, tomado por um certo distanciamento das horas claras, dos sorrisos e risos que cuidavam da harmonia. Em outras, mostrava maior interesse no que me rodeava, podendo até apresentar um ar mais arrogante e impulsivo. Para descrédito da minha condição de ser sensível, essas eram formas de abreviar a empatia com aqueles que me conheciam desde o meu nascimento.
Sendo o rebento mais jovem de uma família rica, tinha sempre alguém ao meu lado que me ensinava os assuntos mais pertinentes, dando-me linhas com as quais traçar os caminhos que levavam à intelectualidade. No entanto, tal como vinha, tão depressa ia, talvez já farto das minhas mudanças de humor e do aspecto um tanto leviano com que levava a aprendizagem. Tal não queria dizer que os meus professores não me considerassem inteligente pois até os surpreendia ao refutar certas das suas opiniões com argumentos que lhes pareciam válidos. Afinal, uma coisa é saber o que nos ensinam, outra é sentir um certo aborrecimento com a matéria dada e pretender mostrar que até somos capazes de raciocinar.
Já na minha adolescência mostrava um grande conhecimento sobre muitas coisas e, se não fosse assim tão estranho, talvez tivessem menos medo de mim. Bem, não sei se era mesmo medo mas o que pensar quando olham para nós com uma certa estranheza e ouvimos murmúrios quando pensam que não estamos a escutar?
Apesar do que queriam incutir-me, os meus hábitos privilegiavam afinco por certas matérias que sempre me tinham interessado, realçando todo o fulgor que é acariciar um conhecimento mais consentâneo com uma identidade própria. Com tal, pretendo dizer que não desejava saber apenas o que uma pessoa elevada pela “normalidade” iria saber mas algo mais: aquilo que escapava à compreensão mundana.
Um certo dia, quis afastar-me da mansão e recolher-me numa casa que ficava no final de um extenso jardim de modo a ter a minha paz e, aqueles que não me entendiam, a sua. Disse apenas que precisava de ponderar sobre certos conceitos elementares mas uma outra razão é que já estava farto de escutar que a minha vida era moldada por lamentos, devaneios e fantasias em relação ao mundo. Afinal, porque não deverei indagar acerca dos propósitos que nos definem e que a sociedade impede de visualizar? Será mais importante seguir os caminhos traçados pela tradição? Será melhor ser uma cópia barata de quem formulou ideias e ideais embora nada tenham a ver comigo?
Quantas vezes a minha voz seguiu a intensidade da do meu pai que me perguntava porque não podia ser como os meus irmãos, frutos de um casamento anterior, que tinham os olhos postos num futuro que ele designou. Rever-me em alguém, descobrir que não tenho identidade, enriquecer o ego de quem me fez nascer com a convicção de que eu não serei melhor, livre até, mas apenas um cuja vontade é muda… Caramba!!! Não o desejo para mim!!!

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