quinta-feira, setembro 08, 2011

Como nuvens de seda na minha carne (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

As primeiras palavras de um relato devem ser sabiamente inspiradas de modo a chamar a atenção e criar interesse para que depois sejam lidas privilegiando um atributo inerente à curiosidade. No entanto, se o início é belo, não tem necessariamente de apresentar um cenário ou uma personagem em que a felicidade exista sem quaisquer remendos. Assim, para que este começo seja verdadeiro digo sem qualquer vergonha ou ironia que eu, o desafortunado, censurava o meu nascimento. Não sei se já o fizeram ou se encontraram alguém que o tenha feito, mas, acreditem-me, não me importava de não ter nascido.
Acalmem-se, esqueçam o choque, passo a explicar o porquê do meu descaramento…
Desde há muitos anos que padecia da má sorte que era viver onde a adversidade tem uma dilacerante voz. Embora nunca consentisse que o meu âmago fosse assolado pela iníqua abstracção, uma vil tempestade que ataca, desfigura e sentencia, esta sempre me fazia sofrer. Claro que sonhava com a beleza de melhores momentos, afinal há que haver um certo rubor de vez em quando, mas isso não era o suficiente para que me sentisse bem.
Porque a realidade deverá ser pintada com cores que afaguem a harmonia, seria bom que qualquer desejo pudesse ser concretizado, mas, se tal acontecesse, a ansiedade não existiria, o que poderia aborrecer aquela entidade que está além das
questões mundanas. Digo isto por achar que talvez tivesse nascido para ser um fantoche onde várias cordas estão partidas, qualquer coisa sem nexo ou crédito deambulando ao bel-prazer desse incómodo celestial.
Como já devem ter percebido, fui sempre dado a lastimar e não a profetizar, mas, como tudo na vida é estranho, o espanto sacudiu-me uma certa noite em que a minha alma era nervosamente escavada pela penúria…
Tinha ido para o meu quarto após mais um dia de melancólicos devaneios pois o arrepiante desenvolvimento de uma doença fazia o entusiasmo desaparecer e a solidão apenas aumentava a minha dor. No entanto, apesar de a mente compreender que o sono é preciso, a alma pode ser ingrata e não deixar o esquecimento surgir. Assim, sofria enquanto estava deitado na cama, virando-me incontáveis vezes de um lado para o outro, os lençóis e o cobertor envolvendo o corpo com uma tal frieza como se também conspirassem para o meu nervosismo. Se estes soubessem o quanto os detestava…
Silenciosamente, rogava pragas perguntando-me por qual razão nem a fadiga me fazia dormir. Será que os devaneios são maldições que infligem os pobres, os azarados e os doentes, o descanso sendo uma preciosidade sem graça que não sabe fazer sorrir? Se assim fosse, de que valia a pena viver?
Como sempre, o meu delírio era o absurdo de mais uma noite ansiando por um paraíso longínquo, aguardando uma simples viagem que me afastasse destes cinzentos sem graça e relíquias sem brilho. Não queria acordar para um mesmo reino, aquele que me conhecia há muito tempo, pois sabia que ninguém estaria ao meu lado. Sentindo-me como se tivesse sido amaldiçoado pelo desprezo, nada esperava que me pudesse agradar mas a incerteza é uma liberdade que afunda o momento e nos arrepia em trejeitos desconcertantes.
Surpreendi-me ao ouvir barulho quando o silêncio acobertava as noites passadas. No entanto, não tendo a leveza da fantasia, julguei depois que um vento mais forte tinha feito com que um qualquer objecto embatesse numa parte incerta do jardim que rodeava a casa. Pois… A realidade nunca espanta a quem está acostumado a tantas certezas, a verdade sendo que nunca senti que pudesse haver alegria em meio ao meu pranto, uma dança que enriquecesse o íntimo e transformasse as lágrimas em frutuosa esperança

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