quinta-feira, setembro 08, 2011

A rosa e a madrugada (excerto de um conto que pode ser lido no livro "O cortejo das virtuosas solenidades")

Apesar de o dia já ter fenecido, de os ramos das árvores bailarem irrequietamente e de a chuva banhar a terra de forma perturbante havia certas circunstâncias que me faziam bem.
O facto de estar dentro de uma sala e ter a vibrante sensação de abrigo, uma esperançosa fuga para além de todo o dramatismo criado pela tempestade. A luz de vários candelabros dispostos em locais estratégicos que parecia saudar-me com a boa aventurança que apenas o requinte de um certo romantismo poderia elevar. Por último, observava uma formosa mulher de cabelos louros e olhos castanhos que se distanciava da agreste envolvência da Natureza e regia o ar com deliciosas figuras estilísticas, a voz e o piano discorrendo sobre cenários de belos tons onde tudo o que era sublime transmitia serenidade.
A sua voz soava como a mais doce melodia de um anjo, a alegre sensação de cortesia perante a suave pintura de sorrisos e expressões de riqueza num véu de sensações inebriantes. Mal a tinha visto e já me sentia seduzido pois cantava uma alegre composição enquanto os seus dedos desenhavam contornos harmoniosos nas teclas do piano, tal sonho de moradias esfusiantes onde se regista a sensação de conforto. Não me lembrava de alguma vez ter ouvido tão majestosa obra mas tocava-me o coração conhecê-la e à sua intérprete, sentindo-me como se não houvesse um outro recanto que merecesse tal divina iluminação.
Parecia-me feliz, a sua expressão levando-me a sorrir, a desejar viver a sua alegria com as palavras que somente a concordância entre artistas poderia disseminar. Sim, também eu o era embora tocasse um instrumento cujas cordas tinham outro dinamismo.
O violino sempre foi o meu instrumento de eleição, os sons que dele se podia tirar tendo a liberdade de criar alegria ou tristeza, serenidade ou raiva. Sem pudor, dizia sempre que este elevava a alma a um recinto impermeável a todas as propriedades que a crua realidade poderia invocar. Além disso, havia maior liberdade para um artista por este poder tocar as mais belas peças mesmo sendo um andarilho sem casa.
Longos momentos passaram e tudo o resto parecia distante, a voz e o piano sendo figuras impressionantes num recital que não precisava de qualquer outro interveniente. Sentia-me feliz por ser um espectador, poder ser contagiado por tudo o que dela era, considerando uma honra estar perante tão grande nobreza e não desejando estar em algum outro lugar ou momento do que esse.
Sendo conhecedor da frutuosa emancipação que reveste o espírito, a minha ousadia pelo devaneio rasgava também este momento. A verdade é que o íntimo pode aprender com a harmonia a ser altivo, a libertar delicadeza atrás de delicadeza mas, mesmo assim, o que nos atrai também pode consumir o conforto quando existe uma certa conformidade com o que de mais trágico a Natureza concede. Ao silenciar a voz e o piano, o seu choro foi também a angústia no meu peito…
Abrindo os olhos, senti um aperto que me constrangiu e deixei as lágrimas escaparem, a minha face sendo banhada pela mesma dor que cortava a serenidade em tão divina mulher como se tudo o que me apercebia nela encontrasse eco em mim. De modo a que se sentisse um pouco melhor, decidi-me a tocar uma rica melodia no meu violino, uma forma de mostrar que existia algo mais do que a importância dada à mágoa. Primeiro, a sua expressão teve laivos de surpresa, depois aproximou-se da confusão e, finalmente, de um certo arrepio.
– Charles?! – disse, espantada – Charles, és tu?
Não me conhecia por tal nome. Aliás, não havia nome para mim mas deixei de tocar e, após colocar o violino e o arco em cima de uma mesa, aproximei-me dela.
– Não pode ser!!! – gritou, uma expressão de incredulidade desenhada na sua face.
– Desculpai-me, bela dama, mas não conheço quem me julga ser. Infelizmente, não me lembro do meu nome.
– Sou… Mas… não te lembras de mim? Mas… Não pode ser! Charles! Sou eu… Béatrice… Mas… isto é impossível… Charles não mais existe… está… morto…

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