quinta-feira, setembro 12, 2013

excerto de "Truques e um golpe de sono"

"Naquela noite de ricos trajes, um homem, vindo da escuridão premente, vestido de forma infernal, cumprimentou-me sobejamente valendo-se de simpatia e elogiosa benevolência para com a minha conduta de poeta. Agradeci tal acto porque a minha poesia apenas mostrava dar a conhecer o que se podia imaginar do paraíso e do inferno, a desigualdade entre os dois encontrando semelhanças no nosso reino, este pelo qual tantas vezes ponderamos com ironia, sem nos interessar a cortesia, o respeito ou a hipocrisia. As suas palavras eram ditas com uma tal leveza não fosse o facto de o corpo conhecer a vermelhidão das brasas, os olhos trocando sinónimos com todas as trevas que se conhecia e só a partir do momento que lhe disse que ia descansar um pouco, o seu discurso mudou de tom.
− Oh ser cuja alma brilha, quem diria que iria defraudar a arte com o sono? Deveria criar e não adormecer!
− Se pretendo dormir é porque a poesia me gastou as forças e tudo o que deverá nascer de mim é uma riqueza que não poderei encontrar enquanto fraco.
− A poesia ou a loucura que bebeu? Se a vontade for muita, não haverá realidade que afaste a Arte!
− A loucura já nasceu em mim e a minha vontade é muita! É por isso que pretendo que seja a Arte a afastar a realidade…
− Sábias palavras que mereceriam aplausos… – disse, um longo silêncio surgindo depois.
− Mereceriam? Por qual razão não merecem? Será que o que disse tem menos valor a estas horas da noite? – perguntei, sorrindo.
− Porque só se aplaude a quem cria de forma inspirada e não a quem diz isto e aquilo embriagado, o sono cativando-o a empobrecer o espírito.
− As vossas palavras mereceriam uma vénia, mas perdoe-me se me sinto demasiado oprimido pelo cansaço para me levantar e abaixar. A loucura, a idade e o álcool sempre conquistam lugar no nosso corpo, apenas o meu espírito prenunciando altivez quando disposto perante tais agruras.
− Até o veneno que é mortal para o corpo de um humano, pode ser para a alma. Eu não enveredo por tais desencantos…
− Bem, não é muito estranho que, nesta festa onde a primazia seja dada à fantasia, um homem que se veste como um demónio diga que a Vida não lhe enlouqueceu um pouco, que suporta bem a idade e que ainda não bebeu. Mas duvido que sem a máscara o possa dizer…
− Nem todos podem dizer que com e sem uma máscara sejam verdadeiros, mas existe sempre quem o diga e seja. Eu, colocando-o sem rodeios, o digo e sou!
− Goza de um homem que nasceu poeta…
− Digo apenas a verdade.
− A verdade está em todos os pequenos prazeres da vida pois são eles que nos ensinam como podemos ser mais do que a soma dos preceitos divinos e demoníacos. Esses sendo apenas restos de uma antiga e virulenta insanidade, a corja mais entorpecida criada por quem desejava comandar aqueles que são fracos, sem alguma personalidade a enaltecer.
− Há maior riqueza para além do que vê, do que ouve e do que sente pois todas as verdades singram entre o Bem e o Mal! Acredite, o benfeitor e o malfeitor são lados que se cruzam várias vezes na Vida e a religião ajuda a distingui-los.
− O que diz é apenas uma das banalidades que se conhece enquanto se respira! Para mim, o que a religião mostra é uma forma ingrata de superar o medo, o desejo de não estarmos sozinhos. Infelizmente, descobrimos depois que somos escravos da sua vontade, que não podemos pensar e agir por nós próprios, que perdemos o nosso rumo.
− Pensa demasiado para quem está embriagado e com sono…
− Eu sou um poeta, um artista que preza mais a sua mente e o seu espírito do que ter de se agarrar a todas as vontades absolutas criadas por mentes sujas e espíritos cretinos.
− Não pense que por não temer não haja forma de apodrecer em meio a óbvias conclusões.
− Graceja demasiado para meu gosto mostrando que o seu vocabulário pode ser rico, mas a mente é mais baixa do que a minha. Vá embora e deixe-me dormir! Já não me importam as suas conversas!
− Uma vez mais, descubro que a vaidade, a ingratidão e a estupidez são as mortalhas que o Homem bem conhece. Que assim seja…"

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