quinta-feira, setembro 12, 2013

- "De um encanto preso ao amanhecer" - excerto

"O que antes era um murmúrio, uma leve nota de grandeza, gradualmente se deu a conhecer como a doce voz da mulher que amava, a serenidade que antes conhecia abatendo-se com as palavras que expirou:
– Precisas de ajuda! Ainda não reparaste que estou morta?
Por longos momentos fitou-a, o silêncio contradizendo o turbilhão que troava pela sua alma. Vê-la tão bela quanto o primeiro dia em que a tinha conhecido, o seu longo cabelo ruivo adornando uma face oval onde os olhos azulados enunciavam elegância e cortesia. Entristeceu-lhe pensar que ela estava a ficar louca…
– Porque brincas? Acordo e em vez de um beijo, dizes isso?
– Mas é verdade! Estou morta! Já morri há muito tempo, mas não o sabes… Precisas de ajuda!
– Pára com isso! Já não estou a gostar da brincadeira!
– Não é brincadeira, amor… Tens uma vida para viver… Recomeçar a sorrir, esquecer este mundo… a mim…
– Pára! Se queres divorciar-te, então diz! Não me faças isto, desrespeitares-me com algo tão absurdo… Eu amo-te… Amo-te imenso, mas também saberei respeitar e compreender as tuas vontades se não mais quiseres estar comigo…
– O que digo nada tem a ver com o amor… É a verdade… Já não existo… Estou morta há muito tempo…
– Não! Pára com isso! Deixa-me… Deixa-me sozinho… Depois falaremos melhor…
– Sim, é o melhor… Irás descobrir que digo a verdade…
– Descobrir? Apenas quero que me trates como antes e não como se fosses louca, como se tudo o que considerava que eras nada tivesse de belo…
– Mas… Mas tudo mudou… O mundo muda, sabias? Não podemos controlar o Tempo… enfim… talvez… um dia…
E com estas palavras saiu da sala. Sentado no sofá, Vicente chorou por ter conhecido as palavras mais loucas que ela alguma vez tinha pronunciado.
Não sabia o que estava a acontecer, a veracidade do que dizia sendo posta claramente em causa porque, se a via respirar tão bela como a tinha visto em outros dias, algo de certeza devia ter acontecido para agir de forma tão estranha. Enquanto conversaram, não lhe tinha notado qualquer contusão na cabeça, uma pancada que mostrasse que algum acidente pudesse ter ocorrido. Então, que outra explicação poderia haver para agir assim?
A sua mulher não estava bem e algo tinha de ser feito para a ajudar. Tão jovem… Porque é que, quando se pensa que a Vida nos concede bons frutos, quando o futuro surge risonho, existe sempre algo que nos mostra as portas da Loucura? Só se tinham casado há um ano e meio e eram felizes após as agruras de pálidos momentos que não se mostraram tão belos assim para serem recordados, tempos difíceis em que eram marcados pela dor que apunhalava a harmonia e o sorriso que vivia destroçado, uma trágica relíquia enunciada pela áspera existência e que nem o amanhecer conseguia enriquecer. Tal como ele, ela conheceu a nostalgia das lágrimas, a injúria de ter feito planos sempre que uma relação amorosa começava, mas a verdade é que ninguém os merecia mais do que eles os dois descobriram merecer."

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